Ao menos 18 idosos são maltratados por mês em Salvador

‘Ela é muito nervosa’, desabafa idoso sobre a filha; família é a principal responsável pelos maus-tratos

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  • Laura Fernades

Publicado em 16 de junho de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/CORREIO
Clique para ampliar por Infográfico: Morgana Miranda

Trancado do lado de fora de casa pela própria filha, que chegou a queimar suas roupas depois de jogá-las pela janela, o idoso Floriano Machado*, 66 anos, foi obrigado a dormir na rua mais de uma vez. Comia com a ajuda de vizinhos, tomava banho no bar da esquina e cochilava no banco. Arrimo de família, ou seja, responsável pelo sustento da casa onde morava com a filha e os cinco netos, o ex-borracheiro entregava a ela o pouco que ganhava em um ferro-velho, catando latinha, e ainda era maltratado.

Abraçar os netos? Nem pensar. Porque teve tuberculose uma vez, a filha o proibiu de ter qualquer contato mais próximo com as crianças que moravam sob o mesmo teto, mesmo depois da doença ter sido tratada. Foi assim que a bebida virou a principal companheira de Floriano, mais um nome que compõe a estatística divulgada pela Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso (Deati), a pedido do CORREIO: 18 idosos são maltratados por mês em Salvador. Hoje, data seguinte ao Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa (15/6), o número serve de alerta para o tema.“Ela é muito nervosa”, conta Floriano, com o corpo ligeiramente encolhido na cadeira e emocionado ao lembrar da filha.Mesmo com a fala prejudicada pelos dentes que perdeu em um acidente na borracharia, Floriano recebeu a reportagem na Casa de Acolhimento Resgate de Cristo, em São Cristóvão, onde mora há um ano e meio. Questionado por que bebia, ele justifica com o olhar baixo: “Eu apagava e não pensava em nada”.

Dia após dia, Floriano bebia para esquecer os problemas, até uma vizinha perguntar se queria ajuda. “Ela disse: ‘Vou te internar. Você quer’? Eu disse ‘quero’”, lembra o idoso, que aceitou a ajuda sem pensar duas vezes. O motivo era simples: “estava cansado daquilo”. Foi então que a cabeleireira Dulce de Deus*, 45, perguntou onde ele morava e, depois de falar com a família, levou Floriano para o abrigo. (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) “Ele ficava sentado, as pessoas passavam e davam dinheiro, davam comida, levavam ele para tomar banho, mas aquela situação estava me incomodando”, conta Dulce que chegou a levar Floriano para casa, mas o viu na rua pouco tempo depois. “Ficou só dois dias em casa, porque não queria mais”, lembra.

Dulce reforça que foi “só um canal de bênção para levá-lo até o abrigo”, mas infelizmente não tem responsabilidade sobre Floriano. “A verdadeira obra é ajudar o próximo, sem olhar quem. Me sinto realizada de ter ajudado. Foi melhor que ganhar na Mega-Sena”, sorri. Procurada pelo CORREIO, a filha de Floriano disse que o pai está no abrigo “porque quer” e “não está disposta a conversar com ninguém”.

Patrimônio Casos como o de Floriano são mais comuns do que se pensa, quando se trata da população idosa que cresceu quase 10% em um ano, na Bahia, chegando a 2,1 milhões em 2018, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os maus-tratos, sejam físicos, psicológicos ou referentes à apropriação indevida de recurso, representam 82% dos procedimentos instaurados na Promotoria de Justiça de Cidadania, uma das três que fazem parte do Grupo de Atuação Especial de Defesa dos Direitos dos Idosos e das Pessoas em Deficiência (Geidef), no Ministério Público da Bahia (MP-BA).“Maltratar não é apenas bater. É o castigo físico, a ofensa moral e a privação de recursos básicos à sobrevivência do idoso”, explica a promotora de justiça do Geidef, Adelina Bastos Carvalho, 50.Ela destaca que muitas vezes os conflitos acontecem dentro da própria família, provocado por parentes que cuidam do idoso e disputam o patrimônio financeiro recebido por ele, como aposentadoria ou seguro de vida que deveriam ser dedicados ao seu bem-estar. (Inforgráfico: Morgana Miranda) A afirmação chama a atenção, considerando que 66,93% dos idosos são chefes de família em Salvador e Região Metropolitana, de acordo com o último dado divulgado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do IBGE, referente a 2015. Além disso, houve um aumento de mais de 20% de pessoas cuidando da própria família, dentro ou fora do domicílio e sem remuneração, entre 2017 e 2018, totalizando 3,9 milhões de pessoas cuidado dos parentes.

“A maior parte dos casos que a gente tem atendido no MP diz respeito a situações em que o idoso é o principal mantenedor da casa. O benefício que ele recebe, às vezes um salário mínimo, é quase sempre a única fonte de renda da família. Às vezes quatro, cinco pessoas dependem desse benefício para sobreviver”, destaca Adelina.“Infelizmente, como nossa população é extremamente carente e o desemprego só tem aumentado, muitos parentes acabam ficando em casa sob a justificativa de cuidar do idoso e com isso se apropria indevidamente dos recursos”, explica.Privação Foi essa a queixa da cuidadora Cristina Pereira*, 41 anos, que foi proibida pela tia de ver a própria mãe, a doméstica aposentada Tereza Carvalho*, 78. No momento de luto pela perda do padrasto que considerava um pai, Cristina autorizou a tia a cuidar da “parte burocrática” da documentação, já que ela e a mãe não tinham forças para pensar nisso. No momento de fragilidade de ambas, relata Cristina, a tia adquiriu a tutela provisória da irmã sem seu consentimento.

O motivo, segundo a cuidadora que prestou queixa na Delegacia do Idoso e foi ouvida pela Defensoria Pública, seria o seguro de vida deixado pelo padrasto no valor de R$ 370 mil reais, além de uma pensão por morte no valor de R$ 2.173,55.“Perdi o acesso à minha mãe. Meu irmão chora muito, porque quer ver e não pode. No Dia das Mães eu chorei tanto, isso dói a alma...”, conta emocionada, ao lembrar das condições em que vive Tereza.“Minha mãe tem Alzheimer, diabetes, pressão alta, vários problemas de saúde, e está dormindo sozinha. Ela precisa de alguém que preste atenção nela, senão pode morrer. Ela tem 78 anos, está completamente acabada, não anda, não tem cadeira de banho, nem cadeira de rodas”, narra Cristina.Ela até hoje guarda as fotos tiradas por uma amiga que foi visitar Tereza recentemente. “Ela entrou lá e viu a fralda de minha mãe suja, o cabelo com piolho, a comida da geladeira estragada”, conta, indignada.

À Defensoria Pública, a tia de Cristina disse que dá os medicamentos na hora correta, arruma Tereza, troca sua fralda “no mínimo quatro vezes ao dia” e que supervisiona a assistência de outra pessoa que cuida da idosa: a mulher do irmão de Tereza. O motivo para que não seja usada uma cadeira de banho, segundo a tia, é que a idosa não aceita, “mas há barra de apoio no banheiro”, acrescenta.

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Queda de braço Enquanto as famílias brigam pelo dinheiro, quem sofre são os idosos. É por causa do contexto afetivo que vem a dificuldade de ter dados mais sólidos sobre a violência contra eles, explica a defensora pública Laise de Carvalho Leite, coordenadora das Defensorias Especializadas em Proteção à Pessoa Idosa. “Vem da postura do idoso que não quer denunciar o agressor”, alerta.“Ao mesmo tempo que a população idosa está aumentando, essas pessoas passam a ser provedoras do lar. Mas muitas vezes há a utilização indevida de sua renda, seja quando a pessoa idosa não está mais lúcida, ou está presa à dependência afetiva”, explica a defensora que acredita que “nem a sociedade nem o estado se prepararam para o envelhecimento da população”.A violência contra o idoso é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um ato único ou repetitivo, ou uma omissão – seja intencional ou involuntária – que cause dano, sofrimento ou angústia na pessoa. Isso explica porque muitas vezes ela acontece a partir da sobrecarga daquele parente que trabalha o dia inteiro e não pode cuidar do idoso, aponta a defensora, principalmente quando ele possui algum problema de saúde.

Tudo isso piora quando não há uma boa relação familiar, acrescenta a coordenadora do serviço de psicologia do Hospital Aristides Maltez, Suzane Bandeira, 48. “O que se observa é que aquele familiar delegado a cuidar do idoso é acometido de uma série de sobrecargas que, às vezes, a depender da relação com o doente, pode complicar ou não. Se a relação não é tão boa e a pessoa é a única a estar ali porque não tem emprego, por exemplo, isso complica em termo de paciência, de cuidado”, alerta a psicóloga. (Infográfico: Morgana Miranda) O geriatra e gerontologista Márcio Peixoto, 43, concorda e acrescenta que “não há um programa especifico voltado para a formação de cuidadores, ou uma vontade pública de fomentar a criação de pessoas para cuidar de idosos”. Além disso, o médico do Hospital Português destaca que o fato do idoso ser o principal responsável financeiro da família “é reflexo do desemprego e uma tendência triste, porque mostra como nosso estado é pobre”.

“Isso é um grande problema, não só porque inverte a ordem natural das coisas, dos filhos ajudarem os pais quando chegam na velhice, mas porque aquele idoso continua com responsabilidades e isso por si só traz uma carga emotiva. A gente vê isso não só nas classes desfavorecidas, mas na classe média também: idosos que viram arrimo de família”, resume Peixoto. “O Brasil está envelhecendo e nós não estamos nos preparando para essa população”, alerta.

*Nomes fictícios das fontes que pediram anonimato

Fragilidade das vítimas é facilitador, diz delegada

As violências praticadas contra os grupos vulneráveis (crianças, idosos, mulheres) normalmente acontecem por conta da fragilidade das vítimas, destaca a delegada titular da Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso (Deati), Laura Argôllo.“É a questão do dominador frente ao dominado. A desproporção deve ser, no imaginário do agressor, um facilitador, assim como a dependência dessa vítima aos aspectos afetivos e financeiros”, explica.Das 523 ocorrências registradas na Deati de 2017 a abril deste ano, referentes aos maus-tratos, 496 ferem o Art. 99 do Estatuto do Idoso. Este diz ser crime “expor a perigo a integridade e a saúde física ou psíquica do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado”. A pena é detenção de seis meses a três anos de multa.

A faixa etária mais vitimada está entre 70 e 90 anos, de acordo com a Deati, sendo na sua maioria do sexo feminino. Já o perfil do agressor engloba “filhos, netos, cuidadores (as) aos quais os idosos estão sob proteção, bem como parentes mais próximos”. Segundo a delegada titular, na hora de “retribuir o legado moral, psicológico e material de quem cuidou tanto da gente” é quando “as pessoas mais maltratam”. “É o próprio filho, a filha, o genro, a nora, o irmão... Isso é que choca”, admite a delegada.

Para Laura Argôllo, pensar na redução desse tipo de crime, ou de qualquer outro, “implica em uma atitude da sociedade como um todo”.“É preciso chamar a atenção das pessoas para o seu dever e direito como cidadão, porque segurança é responsabilidade de todos. Não vejo como a gente mudar essa situação se não for acompanhada de uma grande campanha educativa em favor da não-violência. Educação é a base de tudo”, defende.Tipos de violência

Negligência Falta de cuidado com, por exemplo, medicação, consultas e higiene do idoso

Violência patrimonial Apropriação indevida de recursos do idoso

Violência física Uso intencional de força  que resulte danos físicos ou psicológicos

Violência psicológica Palavras e atitudes que criem traumas psicológicos

Como denunciar

Disque 100 (atendimento nacional)

Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso (Deati) 3117-6080 (atendimento regional)

Defensoria Pública 129 (agendamento; ligação deve ser feita por telefone fixo) | www.defensoria.ba.def.br (agendamento online) | 3103-3653 (para informações)

Núcleo de Direitos Humanos (ligado à Secretaria de Justiça Direitos Humanos e Desenvolvimento Social) 3115-0271