Após greve, mercadorias chegam à Ceasa, mas 30% da carga já vem estragada

Preocupação é com questões sanitárias e com saúde pública

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  • Thais Borges

Publicado em 31 de maio de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

As imagens de 18 mil abacaxis apodrecidos e caídos no chão da Central de Abastecimento da Bahia (Ceasa), em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), revelam mais um dos prejuízos da greve dos caminhoneiros. Na manhã desta quarta-feira (30), o carregamento vindo da Paraíba conseguiu, finalmente, chegar ao destino – o problema é que tinha perecido muito antes.

Em condições normais, o desperdício de alimentos já é um problema recorrente no Brasil. De acordo com estudos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam alimentos no mundo. O porcentual chega a 30% do que é produzido.

Além disso, dados da Empresa Brasileira de Agropecuária e Pesquisa (Embrapa), mostram que embora esteja presente em toda a cadeia, o desperdício é mais recorrente no manuseio e transporte: chega a 50% do perdido, ou seja, 15% do total produzido.

Ocorreu, durante a paralisação, uma piora visível nas condições adequadas de armazenamento de transporte. O que, certamente, impactou o índice já elevado de desperdício. Ainda assim, é improvável atualizar os dados com base na crise instaurada pela greve, por falta de uma metodologia específica para estimar as perdas.“Os produtos que precisavam de refrigeração, por exemplo, não a tiveram. A embalagem, às vezes, também é inadequada, não há treinamento de manuseio, o que só agrava”, comenta o Especialista na área de pós colheita da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Murillo Freire. Carga de abacaxi veio da ParaÍba, mas estragou no caminho (Foto: Marina Silva/CORREIO) Mesmo assim, entre os 350 caminhões que chegam, por dia, à Ceasa, o presidente da Associação de Permissionários da Central, Eguinaldo Nascimento, estima que praticamente nada se perca. “Em um dia normal, quase nada estraga ao ponto de não ser comercializado, porque temos vários padrões de hortifrúti. Deve ficar em torno de 2%. Num dia como hoje, esse número deve ter chegado a 30%”, opinou. Ele acredita que os 1,1 mil permissionários da Ceasa tenham perdido cerca de R$ 5 milhões só com mercadorias estragadas. 

Desperdício Diariamente, a produção de hortifrútis na Bahia é de 2,6 toneladas, calculou o presidente da Faeb, Humberto Miranda, a pedido do CORREIO. São 970,2 toneladas por ano. Em geral, da fazenda até a mesa do consumidor, de 25% a 30% dos produtos hortifrutigranjeiros estragam enquanto ainda estão nas cargas dos caminhões. Dessa vez, no caso da banana, por exemplo, o desperdício chegou a 100%. 

“Na região do baixo sul, foram R$ 6 milhões prejuízo. Isso porque a banana é muito perecível. Quando chega no topo da colheita, se não houver distribuição correta, ela estraga”, explica Eguinaldo. Nos primeiros dias da greve, ele conta, foram 36 caminhões com 17 toneladas de banana com a carga perdida. Isso apenas na Chapada Diamantina, na região das cidades de Utinga e Wagner.

O desperdício só não foi maior porque muita coisa foi doada a comunidades próximas aos bloqueios onde estavam os caminhões parados. De 100 caminhões que estavam nos bloqueios da Ceasa, pelo menos 30 eram justamente de banana, calcula, novamente, o presidente da Associação de Permissionários da central, Eguinaldo Nascimento.“Desses (de banana), entre 60% e 70% das mercadorias foram doadas. Mas acredito que só 10 ou 15 tenham chegado aqui, porque ainda tem caminhões nos bloqueios e muitos também voltaram para a roça. Com as mercadorias doadas, eles foram carregar produtos novos”, disse Eguinaldo Nascimento.Chegada na Ceasa Os primeiros caminhões chegaram à Ceasa nas primeiras horas da manhã desta quarta-feira (30). Segundo a coordenadora de mercado da Central, Rejane Caldeira, foram cerca de 160 caminhões. Só para dar uma ideia, na última segunda-feira (28), foram menos de 10. Em dias de feira (segundas, quartas e sextas), o número oscila entre 350 e 400. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Os próximos dias serão intensos. Pelas conversas com os permissionários, ela espera que muitos caminhões cheguem nesta quinta-feira (31). A expectativa é tanta que a Ceasa vai abrir uma hora mais cedo: às 4h, ao invés das 5h habituais das terças e quintas. Como não são dias de ‘feira’, as terças e quintas costumam receber menos cargas.

“Hoje já tem bastante cebola, tomate, pimentão, repolho, tudo que não estava chegando. Banana prata que não chegava nada, hoje, já chegaram 10 caminhões. Se Deus quiser, o mais rápido possível, vamos voltar à normalidade”.

Qualidade Além do abacaxi, uma carga de melancia foi toda perdida. Essas mercadorias apodrecidas têm dois destinos: compostagem ou aterro sanitário. “A empresa faz a coleta e leva para o lixão. Tem a nossa compostagem, mas, como ainda é um piloto, utilizamos pouco”, explica Rejane.

Muitas das frutas e verduras que chegaram não vieram em boas condições, a exemplo da batata inglesa e do abacaxi. Um fornecedor da fruta, por exemplo, perdeu metade da carga. O caminhão carregado com 18 mil abacaxis vindos da Paraíba ficou preso nas imediações da cidade de Santo Estevão, no Centro-Norte baiano. Parte da mercadoria apodreceu a caminho de Salvador. "Estamos juntando tudo isso para jogar fora. Não presta mais para o consumo, foi quase uma semana com o caminhão parado na estrada e os abacaxis não resistiram", conta o carregador José Silva, 32.A batata inglesa, um dos produtos que mais faltou nos supermercados, veio meio murcha. Como apenas dois caminhões chegaram à Ceasa na manhã desta quarta-feira, os distribuidores não tiveram muita opção. A mercadoria foi vendida assim mesmo, com grande procura e qualidade inferior. 

O tomate, que estava sendo vendido por até R$10 o quilo nos supermercados, chegou no centro de distribuição e, nas primeiras horas da manhã desta quarta, contam os comerciantes, o desespero foi grande para garantir. Uma caixa com 20 quilos, há alguns dias, estava sendo vendida por até R$150. Agora, a mesma quantidade está sendo repassada entre R$100 e R$120.A comerciante Ivete Anatólio, 40, comprou 20 sacos da verdura para revender aos seus clientes. Cada saco com 20 quilos lhe custou R$300. Antes, o saco saía por R$80. Ela repassa a carga faturando R$50 em cada saco. "Veio meio 'murchinha', uma qualidade bem inferior do que antes. Mas, mesmo assim, não deu para quem quis. Dos vinte sacos, já vendi 18 e esses dois já estão reservados para outros clientes", disse Ivete."Com esse valor, o tomate chega nos supermercados custando R$ 8 o quilo, calculando os custos dos vendedores", explica a comerciante Ana Campos, 30. A qualidade dos produtos será fiscalizada pela a Vigilância Sanitária de Salvador nos supermercados e mercadinhos dos 12 distritos sanitários da capital baiana. Chefe do Setor de Produtos e Estabelecimentos de Interesse à Saúde, Gilmara Sodré explica como ocorrerão as vistorias, intensificadas a partir desta quarta-feira (30), devido aos dias de paralisação dos caminhoneiros.

“A equipe foi orientada a verificar situações impróprias que comprometem a situação do produto: descongelamento e congelamento (verificado pela formação de cristais de gelo na embalagem), embalagens molhadas ou alteradas, odores estranhos, prazo de validade”, lista.  Ela recomenda que os consumidores, durante as compras, já prestem atenção nesses quesitos. 

A representante da Vigilância Sanitária também alerta: os produtos, se não podem ser vendidos, também não podem ser doados. A proibição é fixada pela Lei Municipal º 5504 e por determinação federal.“Legalmente, quem fornece o alimento é responsável por aquele alimento. Caso ele ocasione um surto, uma doença causada por esse alimento, o responsável será o doador”, explica. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Grande procura A cebola branca era o produto que praticamente tinha desaparecido das prateleiras. As que restavam já estavam em péssimas condições e os comerciantes não encontravam fornecedores. O distribuidor Nildo Lima, 47, trouxe duas carretas carregadas - um veículo com 16 toneladas e outro com 12 toneladas. O saco com 20 quilos estava sendo vendido por R$60, mas já chegou a ser vendido há alguns dias por R$90. "Coloquei esse preço porque com toda essa paralisação o frete aumentou e tivemos um custo maior para manter os carros parados nas rodovias. Por exemplo: cada trabalhador que ficou de braços cruzados recebeu sua diária porque eles precisavam comer", diz Nildo.O consumidor pode denunciar ao Procon estabelecimentos que vendam produtor a preços a abusivos.

O presidente da Fecomércio, Carlos da Souza Andrade, acredita que essas oscilações, em alguns casos, são reflexos do prejuízo – calculado em R$ 50 milhões por dia para o varejo de Salvador e Região Metropolitana; e de R$ 150 milhões para o setor em toda a Bahia. 

“Pensávamos até que o mês ia ser bom por conta do dia das mães, que é o segundo principal dia do ano para as vendas, após o Natal. Esperávamos aquecer. Isso [a greve] vai criar uma situação de dificuldade. Agora, é preciso que haja mais diálogo entre o governo e o trabalhador para retomar a situação”, acredita.

Animais Outro grande problema durante a greve foi a morte de frangos – sem ração, pereceram de fome. De acordo com o diretor de defesa sanitária da Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), Rui Leal, por enquanto, a mortalidade dos frangos está controlada, graças a ações do governo do estado em conjunto com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Como uma reportagem do CORREIO mostrou, o medo dos produtores era de que 170 mil frangos começassem a morrer de fome, por dia, a partir de terça-feira (29), por falta de ração.

Até então, ele estima que 80 mil frangos tenham morrido, desde o início da greve – embora seja um índice alto, é muito menor do que as previsões esperadas. Por isso, até o momento, não houve problemas com o descarte. Cada granja possui seu responsável técnico. E é ele quem, fiscalizado pela Adab, determinar o local mais adequado para o processo. Via de regra, o procedimento deve ser realizado longe de lençóis freáticos, justamente para evitar contaminação, e distante também de áreas próximas a animais.“Os maiores riscos, na verdade, são ambientais, e a contaminação de lençóis freáticos é o principal deles. Por isso, o governo está tentando viabilizar que essas aves que estão em ponto de abate ou passaram um pouco sejam escoltadas para os frigoríficos”, alerta Leal.O enterro ocorre quando a mortalidade é considerada alta. Ou seja, quando atinge pelo menos 10% da granja. Acima de 20% a mortalidade é considerada “muito alta”, frisou ele. Os animais podem, ainda, ser encaminhados para compostagem nas próprias granjas – transformando-se, assim, em adubo. 

O descarte de animais ou a transformação em compostagem devem ser comunicadas à Adab, para onde deve ser encaminhado um relatório a respeito das causas da morte do animal. Caso contrário, ou notada alguma irregularidade, o produtor pode ser multado de R$ 800 a R$ 2 mil, explica Rui.“Podemos também fazer o encaminhamento para o Ministério Público. Após a análise, pode ser que se comprove a ocorrência de crime ambiental”, diz.                   Normalmente, a mortalidade de frangos oscila ela oscila entre 7% e 8% da população total, ao longo de cada ciclo. Esse ciclo, por sua vez, diz respeito ao nascimento do pinto até o crescimento para abate – e dura entre 45 e 50 dias. A previsão, até agora, previsão era de que 1% do plantel morresse por dia. Assim, se uma granja tivesse mil frangos em um ciclo, 10 morreriam num único dia. 

“As (mortes) que vêm ocorrendo são dissipadas, mas as empresas ainda têm como fazer o descarte adequado. Nos últimos dias, o governo conseguiu, junto com a PRF, fazer a movimentação de algumas cargas em estradas, inclusive, com escolta. Mas isso ainda é insuficiente – é paliativo. Isso vai minimizar um pouco, mas a situação ainda é muito grave”, alerta Leal.

As cargas a que ele se refere, na verdade, são os insumos que compõem a ração dos animais – o milho e o farelo de soja. Como elas são as bases para que as rações sejam preparadas depois, não há um prazo de validade específico – portanto, nesse caso, não há risco de perder a carga. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Riscos à saúde

Além dos riscos ambientais do descarte inadequado de animais mortos e comida apodrecida, há riscos à saúde, de acordo com a médica sanitarista Eliana de Paula, professora da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.“O que me vem à cabeça é a preocupação com as pessoas que poderão ter contato com esse material e se alimentar dele”.Se alguém eventualmente se alimentar disso, pode vir a ter quadros de gastroenterites ou de doenças dermatológicas. Segundo ela, o descarte ideal seria mesmo o enterro. Isso porque, uma vez que o material é depositado em lixões, a céu aberto, é possível que alguém ainda tenha contato.

“Pessoas com fome, carentes, desesperadas poderão ir catar essas frutas, esses animais, e ingeri-los, o que pode ocasionar graves infecções gastrointestinais”. Uma situação parecida pode acontecer com a água: quando esses materiais entrarem em decomposição, se estiverem perto de rios, riachos e mananciais, podem contaminar a água.

Para ela, a situação é tão preocupante do ponto de vista da economia quanto do ponto de vista de saúde pública. “Por isso, a gente deve apelar para que as pessoas não joguem esses restos, em especial, de animais, perto de mananciais, represas, rios”.