Após o longo confinamento

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  • Da Redação

Publicado em 16 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Ela havia tatuado uma máquina de escrever no antebraço esquerdo, e o desenho se alongava até seu ombro. Não era o único. Um pequeno elefante também caminhava em passo lento, com seu pesado corpanzil, em direção à nuca. Mas eu estava impressionada mesmo era com o modo como a luz do dia alterava a cor dos seus olhos castanhos, fazendo com que parecessem meio verdes.

Aquele encontro acontecera por acaso como todo o resto. A surpresa era que finalmente o aceitávamos sem susto. Achei que nunca mais a veria de novo, ela disse, enquanto ajeitava de modo compulsivo os cabelos. Faz quanto tempo? Perguntou, já procurando na bolsa algum isqueiro. Ainda fuma? Devolvi. Sim, sim, mas não se pode acender o maldito cigarro aqui dentro. Ainda bem, pensei em silêncio.

Veja só o que achei num sebo aqui perto, eu disse, e sacudi no ar um amarrotado pocket book de capa amarela. Era um exemplar realmente velho, costurado à mão. Ela olhou o título fingindo o mais absoluto desinteresse. Tratava-se de um livro raro, o Schloss Nornepygge, de Max Brod. Tem lido algo interessante? Perguntei, folheando distraidamente o romance, mesmo sem saber nada de alemão.

Aquela era a pergunta perfeita para nos distrair do que havia de importante. Ah, sim, até o final do ano é possível que consiga terminar aquele Proust. Ela ainda o considerava o melhor escritor do mundo? Mas lá vinha a velha conversa sobre as suas limitações, adiando ao infinito a dedicação total aos livros em nome de convenções absolutamente tolas e de conflitos como aquele.

Ler é o que importa, eu disse, sendo apenas patética como sempre. Ando ocupada com outras coisas, você sabe, a vida, ela desconversou. Sim, eu sei, há sempre uma desculpa. Pronto. Agora, ela estava seguramente arrependida de ter aceitado prolongar o infortúnio fortuito de ter me visto do outro lado da rua e atravessado para falar comigo. A amiga que pertencia a um passado que ficara preso em outro mundo.

Havia me tornado um peso para ela, assim como ela havia se tornando um peso. Mas seguíamos atadas por certa força que atuava maldosamente em nossos destinos. Em alguns momentos, odiava-a a ponto de partir canetas ao meio, apertando-as entre os dedos, enquanto tentava rabiscar alguma coisa. Em outras, sabia que seria preciso aparar as arestas. Talvez fosse o momento.

Estávamos finalmente juntas após o longo confinamento e, no entanto, mal conseguíamos entabular uma conversa mais profunda. Contei então dos meus cabelos brancos, de como aprendi a fazer pão, das horas gastas com poemas que não deram em nada. E até rimos um pouco. Mas, assim que retomamos caminhos contrários, cada uma a seu modo sentiu que ali se iniciava novo distanciamento.