Após o resgate de milhares, caranguejos ainda estão fora do mangue em Ilhéus

Mais de 50 mil animais foram resgatados e cerca de um milhão saíram do mangue; entenda importância deles para a natureza

Publicado em 18 de janeiro de 2022 às 05:17

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Grupo Amigos da Praia
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O alerta da música infantil que diz que caranguejo não é peixe foi posto à prova nos últimos dias em Ilhéus. Com a chuva na região, cerca de um milhão de animais foram arrastados para fora do mangue e 55 mil foram resgatados, segundo a estimativa do Ibama. Apesar do empenho do trabalho voluntário, a expectativa de sobrevivência dos animais é de 60% e muitos ainda podem ser encontrados nas praias.

O acumulado de chuva em Ilhéus chegou a 643,8 milímetros em dezembro, de acordo com dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Além de todo o estrago feito nas ruas da cidade, destruindo casas e vias, o manguezal foi vítima de um desequilíbrio ambiental muito forte, devido à quantidade de água doce que adentrou o local. O impacto é maior ainda porque os caranguejos-uçá estavam no período de reprodução.

Enquanto muitos caranguejos foram arrastados, outros acabaram migrando para as praias buscando águas mais salgadas, explica Flávia Miranda, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e coordenadora do Instituto Tamanduá. “Não existe estimativa de reestruturação do mangue porque foi algo muito atípico. O mangue foi alagado e ficou com um pH, em nível de sal, muito diferente do que o caranguejo está acostumado”, completa.

Flávia estava entre os cerca de 50 voluntários que foram retirar os animais das praias e levá-los de volta ao mangue e viu de perto a agonia e a pressa para conseguir fazer o resgate. “A sensação de resgatar esses bichos não tem explicação. É um sentimento muito ruim ver toda essa mudança ambiental acontecendo tão rapidamente. Eu trabalho há 20 anos com meio ambiente e nunca tinha visto um cenário tão horroroso”, diz a professora, que também participou do resgate de animais nos incêndios do Pantanal, que atingiram níveis recordes em 2020.

As praias Avenida, Farolzinho, Concha e Cristo foram as mais atingidas pela enxurrada de caranguejos. O Grupo Amigos da Praia (GAP), que há quatro anos atua na limpeza do litoral de Ilhéus de maneira voluntária, resgatou os animais por oito dias ininterruptos. O fundador do grupo, Vinícius Alcântara, conta que a quantidade de animais impressionava: “Na minha opinião havia, pelo menos, meio milhão de caranguejos na Praia da Avenida. Digo com certeza absoluta”.Caranguejos ensacados antes de serem devolvidos ao mangue (Foto: Divulgação/Grupo Amigos da Praia)   Ainda segundo Vinícius, os voluntários resgataram, em média, 250 animais em cerca de cinco minutos. “Foi, digamos assim, um enxame de caranguejos que atingiu as praias”, ilustra. Cada membro da GAP que atuou na ação passou cerca de cinco horas, totalizando uma média de três mil resgates por voluntário em um dia. Os animais foram amontoados em sacos e caixas e depois levados de volta ao habitat natural. Parte da vegetação nativa também foi arrastada para as praias e as plantas baronesas serviram como proteção para que os animais se escondessem do sol.

“Eu imagino que o índice de sobrevivência não seja tão alto, devido às condições de resgate, pelos animais estarem estressados e sem se alimentar há bastante tempo”, afirma Flávia Miranda. Além disso, muitos animais acabaram levados pela alta da maré e morreram.

A professora e moradora de Ilhéus Claudyane Burak, nunca havia participado de uma ação voluntária antes, mas, quando viu nas redes sociais que o Grupo de Amigos da Praia precisava de voluntários, se prontificou. “Soube do desastre pelo Instagram e vi que pediam voluntários para o dia seguinte, então me protifiquei”, conta.  A professora e voluntária Claudyane durante a ação (Foto: Acervo Pessoal) Ela acompanhou o resgate durante dois dias, sendo que no segundo participou da soltura dos animais no mangue. “A sensação de estar em contato com outro ser vivo e estar ajudando a salvar uma vida foi indescritível”, afirma. Além da ajuda ao meio ambiente, Claudyane conta que a experiência serviu para ela superar o medo que tinha dos caranguejos.

Apesar do trabalho voluntário ter sido encerrado no dia 9, segundo Vinícius Alcântara, caranguejos ainda podem ser observados nas praias de Ilhéus. Vinícius Alcântara durante o resgate dos animais (Foto: Acervo Pessoal) Fêmeas são 80% dos animais encontrados, diz Ibama

Durante a tragédia ambiental, moradores foram flagrados capturando os bichos e os levando para casa, provavelmente para utilizá-los como alimentação. Durante todo o ano é proibido caçar as fêmeas - a medida existe para manter o equilíbrio da espécie -, mas um dos fatores que ampliam a devastação atual é que justamente elas foram as mais atingidas. Como fazem tocas mais rasas, foram arrastadas mais facilmente pela enchente e representam cerca de 80% dos animais encontrados na praia, segundo o Ibama.

Além disso, o desastre aconteceu no período de reprodução, popularmente conhecido como andada, quando os caranguejos-uçá machos e fêmeas saem das tocas para acasalar e liberar ovos. Nesse momento, fica proibida a caça dos animais. O período terminou no dia 8 de janeiro, mas vai acontecer novamente nos meses de fevereiro e março. Sacos contendo caranguejos antes de serem soltos no manguezal (Foto: Divulgação/Grupo Amigos da Praia) Para mitigar os impactos, Eduardo Votta, analista ambiental do Ibama que esteve presente no resgate, explica que o órgão se comprometeu a devolver os animais que forem apreendidos nas próximas andadas para as regiões mais afetadas pelo desastre. “A maioria dos animais costumam ser machos porque as fêmeas não têm tanto valor comercial, mas é uma forma de recompor a população”.

Eliane Hollunder, que é responsável por um laboratório de larvicultura de caranguejo-uçá, explica que esses bichos possuem grande importância para o meio ambiente: “Eles participam da ciclagem dos nutrientes e levam oxigênio para o solo quando formam suas tocas”.

“Por volta de 2007, uma doença chamada DCL, Doença Letárgica do Caranguejo, provocada por um fungo, atingiu todos os manguezais brasileiros e resultou em uma mortalidade em massa. Esse fungo atinge o sistema nervoso do animal e a doença reduziu muito sua população, principalmente no nordeste brasileiro”, diz Eliane.

Ela também lembra que o caranguejo-uçá sofre com a captura desenfreada realizada pela população ribeirinha e pela contaminação e poluição dos manguezais. Além dos animais resgatados em Ilhéus, o fundador da GAP, Vinícius Alcântara, afirma que foram encontrados animais fora do mangue nos municípios vizinhos Una e Uruçuca.

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.