Argentina traz um sopro de autoestima pra todas nós

Por aqui, seguem as gordas brigando com as magras, as cis brigando com as trans, as homo brigando com as hetero

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 24 de julho de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

A Argentina não reconheceu o cuidado materno como trabalho e passou a contar tempo de maternagem para aposentadoria apenas porque "criar filho dá um trabalho danado", "toda mãe é sagrada" ou algo assim abstrato. Não foi biscoito pra você, nem pra mim, nem pra qualquer outra mãe. O gesto de civilidade institucional - que deve orgulhar cada cidadã/o honesta/a daquele país - é o reconhecimento legal de que as mães fazem (na maioria das vezes, sozinhas, mesmo quando casadas com os pais dos/as filhos/as) o trabalho mais importante do mundo. E que perdem muito com isso. Início de reparação que chama. Início.

Por fazerem esse trabalho (que, paradoxalmente, também é o mais invisível do mundo), mulheres sofrem grandes e concretos prejuízos financeiros. Trata-se apenas disso, ainda que as perdas e prejuízos não parem por aí. Vamos sem romantismo. Mesmo que eu saiba o quanto esse trabalho - importante e invisível - traz de prazer, ainda que ter meu filho (escolhido e planejado) seja a coisa mais incrível que já me aconteceu, ainda que eu deteste esse papo de "amo meu filho, mas odeio ser mãe" (amo meu filho e ser mãe), não há como deixar de reconhecer que a maternidade limita profissionalmente e nos expõe a violências de todo tipo (obstétrica, doméstica e judicial, só pra começar). Reconhecer maternagem como trabalho é um resultado sério e importante da militância (séria e importante) feminista das nossas vizinhas.

Ainda é pouquíssimo computar, para aposentadoria, apenas um ano por filho/a "criado/a". A Opas e a OMS recomendam o aleitamento materno até os dois anos ou mais e eu não sei como é que dá pra amamentar direito retomando plenamente a agenda profissional, seja ela de diarista ou executiva. Sendo que amamentar é só uma parte. Mas, enfim, já é mais do que o nada que temos aqui e muito melhor do que o pensamento subterrâneo de que criar filhos/as é algo desimportante, menor, "só ficar em casa" e "não trabalhar". A decisão traz um sopro de autoestima pra todas nós, claro, mas também nos diz que temos muito o que fazer na prática.

É um bom começo de conversa na vizinhança. Assim como quando da legalização do aborto por lá, em dezembro do ano passado, o que nos dizem as mulheres argentinas é que a militância includente e firme traz resultados concretos. Coisa boa pra gente se lembrar. Por aqui, seguem as gordas brigando com as magras, as cis brigando com as trans, as homo brigando com as hetero e as eternas discussões sobre ser mais ou menos mãe quem faz cesárea ou tem parto normal. Me dá uma preguiça danada. Vazamento de energia, inclusive das mulheres "sagradas". Eu, que sou mundana e prática, sigo pensando em resultados.

Os feminismos (populares) argentinos talvez tenham muito a nos ensinar sobre vida real e maturidade. Há pautas comuns a todas as mulheres, sejam elas cis, trans, pretas, brancas, ricas, de classe média ou pobres. É disso que se trata. As grandes vitórias das vizinhas foram conseguidas em imensos pontos de interseção e confluência de forças. Na luta contra a violência masculina, não podemos escolher se a colega ao lado veio com vagina de fábrica. Também pouco interessa se a outra é hetero ou homossexual por orientação ou atitude política. Menos ainda se é "mãe de pet", de gente ou de samambaia. Vamos aos encontros. O inimigo, de verdade, é o patriarcado.