Ariane Senna conta como é sentir a 'dor da beleza'

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 19 de fevereiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Ariane Senna sofre consequências de procedimento clandestino (foto/divulgação) Na noite do último dia 12, Ariane Senna me ligou. A primeira mulher trans psicóloga de Salvador, mestranda, candidata a vereadora nas eleições passadas, politizada e culta, havia passado por uma aplicação clandestina de silicone industrial nas nádegas. Agora, sofre com dores, deformidades e com o desconhecimento de profissionais de saúde diante desse tipo de problema. “O que os médicos sempre falam é que vão ‘estudar sobre o tema’ e que não sabem mexer nisso”, me diz, ao justificar o fato de não ir a um pronto socorro cuidar das sequelas. “Estou me automedicando, fazendo tudo o que dizem que melhora: compressa de água morna, anti-inflamatórios e corticóides. Faz um mês que realizei o procedimento. E como a ‘bombadeira’ disse que melhorava com um mês, e não vi melhoras, entrei em desespero”, completa. 

Ariane procura atendimento médico capacitado, mas é mais do que isso. Ela quer, também, falar sobre o tema, alertar, jogar luz. A prática é brutal e a falta de profissionais capacitados e dispostos a atender quando ‘dá errado’, ajuda a compor o lugar social reservado a essas mulheres.  “As dificuldades de acesso ao sistema de saúde nos colocam em um ciclo vicioso nesse mundo da clandestinidade, fazendo com que uma aprenda a se virar através das experiências das outras. É o que eu tenho feito, durante todo esse tempo, me automedicando e até mesmo tentando retirar o silicone com a mesma seringa da aplicação, conforme orientações da ‘bombadeira’”, escreve em mensagem anexada a fotos onde vejo sangue.

Aí, você se pergunta “mas pra que se submeter a isso?”. Mas só se você  não sabe que há inadequações nas próteses tradicionais de silicone em relação aos corpos que nascem masculinos. De acordo com Ariane, no caso das nádegas, especificamente. Talvez também não se lembre das questões financeiras de boa parte das mulheres trans. Faz quem pode? Tá. Mas há o fato de que essas “modificações corporais” não acontecem apenas por mera questão estética. Trata-se, também, de adequação de gênero para o que nem sempre a terapia hormonal é suficiente. O que é visto como “submundo” por quem acumula privilégios, portanto, é só vida real, mesmo para quem tem conhecimento pra perceber todo os riscos. 

“Tenho recebido mensagens que me chamam a refletir sobre o meu lugar de ativista social, de uma mulher trans culta, formada em psicologia, mestranda e com a posição social que tenho, ter recorrido a essa prática. Tenho respondido que é preciso menos julgamento e mais sensibilidade, mais interesse pelo assunto. É sempre mais fácil excluir e culpabilizar do que abraçar e, principalmente, entender que essa não é uma prática nem do passado nem apenas do futuro; que, se não nos debruçarmos para enxergá-la como uma questão de saúde pública, certamente continuaremos a morrer, a ter os nossos corpos deformados ou com problemas que comprometam a saúde e vamos seguindo sem falar, deixando que a sociedade (e muitos profissionais de saúde) entendam que se trata de uma questão meramente estética, o que não é verdade”, diz, chamando a atenção para o óbvio. Essa população existe, tem demanda específica e precisa ser enxergada.

As aplicações acontecem nas casas das “clientes” e sem anestesia: “é usada uma agulha para cavalo e outros animais, o silicone é o de uso industrial (feito para limpar pneus, lubrificar carros e pisos) porque é mais consistente e, depois, a ‘bombadeira’ usa Super Bonder para colar os buracos feitos pela agulha, para que o silicone não vaze. Para isso, ela também usa o papel da embalagem da cola”. É assim que Ariane descreve o processo que causa o que muitas chamam de “a dor da beleza”. Mas a psicóloga prefere nomear de outro jeito: "chamo de ‘a dor da construção da feminilidade em nós’”. 

Uma dor física assustadora que vaza para o simbólico. "Vejo que toda essa tentativa de reversão do problema que ensinamos umas às outras - seja pela automedicação ou tentativa de retirada do produto - reflete o distanciamento entre a nossa população e o sistema de saúde. Digo isso por estar vivendo, na prática, essas dificuldades, acionando redes, secretarias e, até agora, sem nenhuma ação concretizada e com muitas respostas de profissionais de saúde sobre os receios de mexer em um corpo estranho. É fácil de entender, então, o porquê dessa prática ainda ser recorrente e não só ela, mas, também, a 'auto-hormonização' e outras as quais muitas de nós, travestis e mulheres trans, ainda recorremos para conseguir uma possível adequação corporal", pondera.

(Nesta semana, portanto, a Quanta quer dizer, apenas: prestem atenção.)