Artigo não prova impossibilidade de transmissão da covid-19 por assintomáticos

Os próprios autores do artigo, ouvidos pelo Comprova, dizem que os dados não permitem comprovar que indivíduos sem sintomas não sejam capazes de infectar outros

Publicado em 30 de novembro de 2020 às 20:30

- Atualizado há um ano

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Conteúdo verificado: Postagem do site Terça Livre diz que estudo feito na China prova que pessoas assintomáticas não transmitem o novo coronavírus. É enganoso afirmar que um estudo feito na China prove que pessoas assintomáticas não são capazes de transmitir o novo coronavírus. O artigo, publicado na revista acadêmica Nature Communication, mostrou que durante uma pesquisa de prevalência sorológica realizada em Wuhan os pesquisadores encontraram 300 casos de pacientes assintomáticos. Eles testaram 1.174 contatos próximos desses pacientes e nenhum deles testou positivo. No entanto, os próprios autores do artigo dizem que os dados não permitem comprovar que indivíduos sem sintomas não são capazes de infectar os outros.

De acordo com o doutor Fujian Song, autor do artigo, é preciso diferenciar pacientes assintomáticos dos pré-sintomáticos. Os primeiros são pessoas que se recuperam da infecção pelo novo coronavírus sem apresentar nenhum sintoma. Já os segundos são aqueles que foram infectados e ainda não desenvolveram sintomas. De acordo com Song, já está demonstrado que pessoas pré-sintomáticas podem transmitir o SARS-CoV-2 antes mesmo de começar a demonstrar sinais da doença.

Além disso, o autor do artigo lembra que a pesquisa foi feita em Wuhan apenas algumas semanas após um rígido lockdown e, portanto, seus resultados não podem ser transferidos para um país onde o surto da covid-19 não está sob controle. Ele também recomenda que, mesmo com o resultado do seu estudo, as pessoas devem manter medidas de contenção do vírus, como a higienização das mãos e o distanciamento social.

Ao Comprova, o professor de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador de um estudo com doentes assintomáticos, Ivo Castelo Branco também disse que ainda não há consenso na comunidade científica sobre a transmissão do vírus por assintomáticos. “Há alguns meses, acreditava-se que as crianças infectadas mas com nenhum ou poucos sintomas tinham transmissão baixa. No entanto, foi comprovado posteriormente que nada disso é verdade, pois com a abertura das escolas, a contaminação aumentou mesmo com as crianças assintomáticas”, exemplifica.

Como verificamos?

Primeiramente, o Comprova leu o artigo científico citado pelo site e entrou em contato com um dos autores da pesquisa por meio do e-mail listado no artigo. Também procuramos os posicionamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a possibilidade de assintomáticos transmitirem ou não o vírus que causa a covid-19. Entrevistamos ainda o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Ivo Castelo Branco.

Também enviamos um e-mail para o site Terça Livre, que publicou o conteúdo verificado, mas não recebemos retorno até a publicação dessa verificação.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de novembro de 2020.

Verificação O que diz o estudo?

O artigo, publicado em novembro, analisa dados de um estudo feito com quase dez milhões de moradores de Wuhan, na China, cidade que foi o primeiro epicentro da covid-19 no mundo, para entender a prevalência do vírus na população. O levantamento, feito pelo governo chinês, detectou, entre outras coisas, a existência de 300 casos assintomáticos na cidade (e nenhum caso sintomático) na segunda quinzena de maio. O governo chinês colocou em isolamento por duas semanas 1.174 contatos próximos dos assintomáticos, mas nenhum deles apresentou resultados positivos nos testes para o SARS-CoV-2.

Os testes de prevalência que embasam o estudo foram realizados entre cinco e oito semanas após o fim do lockdown em Wuhan, em abril. Embora os resultados reforcem que a carga viral (quantidade de vírus) com que uma pessoa tem contato pode influenciar no desenvolvimento de sintomas e, posteriormente, na transmissão entre indivíduos, o estudo defende a manutenção de medidas de saúde pública de prevenção e controle da covid-19, “incluindo o uso de máscaras e a manutenção de um distanciamento social seguro”. Segundo os autores, populações vulneráveis, com baixa imunidade ou comorbidades, devem continuar a ser apropriadamente blindadas contra o novo coronavírus.

O que dizem os pesquisadores?

Em e-mail enviado ao Comprova, Fujian Song, professor titular na University of East Anglia (Reino Unido) e um dos autores do estudo, demonstrou preocupação com a interpretação que as pessoas possam dar ao resultado da pesquisa. Ele explicou que os casos assintomáticos identificados no estudo são de pessoas que não apresentaram sintomas clínicos antes ou durante o período em que ficaram isoladas para acompanhamento. “Alguns casos assintomáticos podem se tornar sintomáticos após alguns dias e esses indivíduos serão capazes de infectar outras pessoas antes mesmo do início desses sintomas”, afirma.

O médico também lembrou que esses casos assintomáticos foram identificados apenas algumas semanas após um rigoroso lockdown que durou mais de 70 dias em Wuhan; o que fazia com que a pandemia estivesse efetivamente sob controle naquele momento. “É provável que a carga de vírus dos casos assintomáticos identificados no programa de triagem em Wuhan possa ser baixa, em comparação com os casos em locais com alta transmissão do vírus SARS-CoV-2. Portanto, é problemático aplicar os resultados do artigo a países onde os surtos de covid-19 não foram controlados com sucesso”, adverte.

Por fim, Song também reiterou que os resultados do artigo não devem ser utilizados para contrariar a implementação de medidas de intervenção não farmacêutica, como a cobertura facial e o distanciamento social. Medidas como estas vinham sendo adotadas pela população chinesa quando os testes foram feitos e o uso de máscaras em lugares públicos continua sendo uma prática comum em Wuhan até hoje.

Autoridades de saúde

Em junho, o tema dos assintomáticos veio à tona depois que a infectologista Maria Van Kerkhove, chefe do departamento de doenças emergentes da Organização Mundial da Saúde, afirmou que a transmissão do novo coronavírus a partir de pessoas “genuinamente assintomáticas” era rara. Um dia depois, para evitar mal entendidos, ela voltou a se pronunciar sobre o assunto dizendo que é preciso ter cuidado ao tirar conclusões a partir de dados iniciais. “Estamos absolutamente convencidos de que a transmissão por casos assintomáticos está ocorrendo, a questão é saber quanto”, ponderou Kerkhove na ocasião.

De acordo com a OMS, “quer apresentem sintomas ou não, pessoas infectadas podem ser contagiosas e o vírus pode se espalhar para outros a partir delas”. Segundo a entidade, dados de laboratório sugerem que as pessoas infectadas aparentemente são mais capazes de transmitir o vírus em um período de dois dias antes de desenvolver os sintomas e no início da doença. Aqueles que desenvolvem casos mais graves podem permanecer infecciosos por mais tempo. “Embora alguém que nunca desenvolverá os sintomas possa transmitir o vírus para outras pessoas, ainda não está claro com que frequência isso ocorre e são necessárias mais pesquisas nessa área”, admite a OMS.

Em seu site, a Fundação Oswaldo Cruz explica que, embora, em média, pessoas infectadas por coronavírus transmitam a doença durante uma semana após o início dos sintomas, dados preliminares do SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, indicam que a transmissão pode ocorrer mesmo sem o aparecimento de sinais e sintomas. “Ou seja, a doença pode ser transmitida mesmo em casos assintomáticos ou antes que a pessoa comece a apresentar sintomas mais claros”, diz a Fiocruz.

Transmissão depende do período da infecção

Procurado pelo Comprova, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará Ivo Castelo Branco explica que a probabilidade de uma pessoa transmitir vai depender mais do período da infecção no qual ela se encontra do que da presença ou não de sintomas.

“A pessoa com covid já pode transmitir o vírus na primeira semana antes do início dos sintomas, ou seja, quando ainda está assintomática”, explica. “Na segunda semana, ela apresenta os sintomas e diminui a carga viral. Na terceira semana, a carga viral praticamente desaparece”.

O médico coordena o “Projeto Avisa: Avaliação de Incidência de Infecção por SARS-CoV-2 e de Covid-19 no Brasil” em parceria com o Instituto Butantan, e estuda a evolução dos sintomas, a possibilidade de reinfecção e o tempo de imunidade à covid-19, tendo como foco as pessoas assintomáticas ou com manifestações leves da doença.

“A maioria dos estudos sobre a covid é sobre pacientes sintomáticos, e ainda por cima, sobre aquelas com sintomas mais graves e que necessitam de hospitalização. Há, portanto, uma insuficiência de informações no meio científico sobre essa parcela de assintomáticos, que representa uma grande parcela dos infectados”, aponta. “Mas o consenso é que é essencial seguir os protocolos de higiene para evitar a infecção pelo novo coronavírus, ou seja, usar máscaras e higienizar as mãos”, acrescenta.

Por que investigamos?

Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre a pandemia, as eleições 2020 e as políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais. É o caso dessa publicação do site Terça Livre, que teve 1,6 mil interações no Twitter e 1,2 mil interações no Facebook, de acordo com a plataforma de monitoramento CrowdTangle. Quando os conteúdos tratam de métodos de prevenção ou disseminação do novo coronavírus, a verificação se torna ainda mais necessária porque informações erradas sobre a doença podem levar as pessoas a não adotarem medidas adequadas de proteção e se exporem a riscos de contaminação.

Desde o início da pandemia, o Comprova já mostrou que as máscaras são eficientes no combate à covid-19; que as vacinas não causam câncer ou danos genéticos; e que que é enganoso dizer que expor a população ao vírus é melhor do que a vacinação para acabar com a pandemia.

O Estadão Verifica e o Boatos.org já fizeram checagens sobre a transmissão do vírus por pessoas assintomáticas.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 28 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do O Povo e Jornal do Commércio, e validada, através do processo de crosscheck, por seis veículos: Folha, Niara, Gaúcha ZH, NSC, Estadão e CORREIO.