As brumas do passado

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  • Paulo Sales

Publicado em 4 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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No livro Baú de Ossos, Pedro Nava empreende uma busca obstinada pela memória dos que vieram antes e se perderam no tempo, mas permitiram que ele existisse. Através dela, reconstitui o universo de “toda aquela população da minha infância que parecia argamassada de eternidade e que hoje está ‘dormindo profundamente’”. As reminiscências de Nava me fazem em muitos momentos planar além da leitura e pensar nos meus próprios antepassados. Pessoas das quais conheço pouco mais do que o nome, quando muito.

A vida de meu avô paterno, Jayme, por exemplo, está envolta em bruma, embora o tenha conhecido relativamente bem até sua morte, aos 94 anos. Era um velhinho tímido, de sotaque lusitano, olhos acinzentados e um bigode amarelado pelos charutos ordinários. Trabalhou 50 anos no Gabinete Português de Leitura, o que dá um indício de onde vem a minha predileção pelos livros. Gostava de vinho, o que é outro bom indício. Sua casa, no bairro da Lapinha, continha uma extensa memorabília de pouco valor material e inestimável valor afetivo. Mas sua história verdadeira, quem foi, o que pensava, como eram as ruas da cidade que então percorria, isso eu nunca consegui depreender.

Curiosamente, sei mais do meu avô materno, Francisco, embora este tenha morrido prematuramente aos 45 anos, antes de eu nascer. Isso se deve a minha mãe, que me passou com um carinho imenso quem foi seu pai. Daí eu saber de quem herdei o prazer de olhar a lua na penumbra ou dedicar um amor inesgotável a minha filha. Só que, da mesma forma, esbarro na falta de mais fatos, o que também se dá em relação às avós, Helena (que me chamava de Popotú) e Ondina (que morreu cega por se recusar a retirar uma catarata). De onde vem o Sales que carrego? Seria normando, como indicam alguns sites que andei pesquisando? Como não tenho linhagem nobre, minha árvore genealógica se resume a um arbusto de galhos secos.

Esses questionamentos me levam a meus bisavós. São pouco mais que borrões. Sei, por minha mãe, que minha bisavó paterna Alzira era uma mulher refinada, que “tocava piano muito bem e apreciava uma bebida quente”. E que minha bisavó Chica era de “origem mais modesta”. De um bisavô paterno, Ludgero, guardo uma foto e um livro de sua autoria, A Família dos Simples, tradição interrompida que tratei de retomar. Do outro, Jacinto, nada. Por parte de minha mãe, conservo de Floriano a imagem do bigode largo num retrato na casa da família, no interior da Bahia. De Sizenando, nem isso. Resta a bisavó Odília, a única que conheci: cabelos brancos longos, pele morena enrugada e uma casa cujo quintal dava para o mar da Cidade Baixa.

Sei que essa ignorância em relação aos nossos antepassados faz parte do curso natural do tempo. Mas é injusto que saibamos tão pouco de pessoas que de certa forma moldaram o que somos. O quanto deles sobrevive em mim, no meu jeito introspectivo, nostálgico? Quem realmente sou? De onde vim? Sei que trago a Europa em minha alma, mas que parte dela? Ainda existem vestígios por lá? Quem sabe num pequeno cartório numa cidadezinha de Trás-os-Montes ou da Normandia. O que fica de tudo isso é a tristeza de perceber que todos eles estão relegados ao oblívio. Como sombras num retrato antigo. Como eu, daqui a 100 anos.