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As sobras de tudo que chamam lar

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 5 de dezembro de 2022 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Soube na semana passada que um casal de amigos se separou. São, ambos, pessoas queridas que compartilhavam gostos parecidos e um jeito leve e divertido de levar a vida, características que os ajudavam a tocar o barco em frente. Como nos clichês românticos, passavam a impressão de que nasceram um para o outro. Mas a vida real não comporta clichês – ou pelo menos eles não se sustentam indefinidamente.

Uma hora a chama simplesmente apaga e cada um pega o seu caminho, carregando ou não feridas dolorosas. Porque nunca é fácil dar adeus àquilo que um dia deu tão certo. A aventura de conviver com outra pessoa, dividir uma casa, ter filhos e fazer planos em conjunto requer doses significativas de destemor e renúncia. Há também as convenções sociais: a pressão por um casamento bem-sucedido (seja lá o que isso signifique), carapaça de harmonia e felicidade que muitas vezes esconde em seu cerne indiferença, rancor e frustração.

Michel Houellebecq já disse que a solidão a dois é o inferno consentido. Mas, mesmo nessas situações, nem sempre é fácil tomar a decisão extrema: arrumar as malas, separar o que pertence a cada um, colocar os bens à venda e partir para outra. Uma ruptura unilateral pode provocar, no extremo oposto, um doloroso sentimento de rejeição que pode ou não amainar com o tempo. Perder alguém que se ama dói, e muito. Deparar-se sozinho e sem alicerces, também.

Creio que todos nós passamos por algo assim em algum momento da vida. O resultado é a cabeça pesada, a visão turva e um vácuo no tórax. Uma sensação de desamparo e impotência que avança e vai nos cobrindo aos poucos, feito um manto moldado em arame farpado. Sei bem o quanto isso machuca. É como se aquela imagem positiva que cultivamos de nós mesmos repentinamente se transformasse num borrão, numa caricatura que ressalta o que temos de mais grotesco.

Viramos um arremedo de nós mesmos, pequenos monstros de argila sem forma e sem vida, a procurar um sentido para o espaço vazio deixado no guarda-roupa. Devastados com as ligações que não são mais atendidas e os boatos e insinuações ditos quase ao acaso. Dá trabalho reconstruir o que fomos: a cicatriz continua coçando de vez em quando, nos lembrando do nosso fracasso sentimental. Adoramos pelo avesso, como na canção de Chico Buarque.

Já presenciei amigos e amigas desmoronarem feito imóveis condenados, enveredando pelo labirinto da própria rejeição e se realimentando dela para sobreviverem. Como se arrancassem a cada dia o cascão de uma ferida com o intuito de mantê-la viva. Gente centrada, experiente, que parecia capaz de tirar de letra um pontapé na bunda. Somos mais frágeis do que imaginamos.

Há também o outro lado: a infelicidade conjugal. Quem dera as relações amorosas fossem idílicas e solares como nos comerciais de lançamentos imobiliários: sorrisos na piscina, taças de espumante nas mãos e filhos correndo em câmera lenta pelo gramado. O que há na verdade é uma negociação constante. Enquanto há equilíbrio nesse escambo de sentimentos e aspirações, vamos levando. Quando não há, cada um toma o seu rumo – carregando a reboque filhos, processos judiciais e pensões alimentícias. São as sobras de tudo que chamam lar, para voltar aos versos de Chico.

Não que a vida a dois seja uma experiência aborrecida, longe disso. É agradável passar o tempo ao lado de quem amamos, ver os filhos crescerem, cultivar planos de viagem ou de uma casa mais ampla e confortável. Compreender melhor as imperfeições – nossas e do outro. É aquele momento em que a paixão incandescente da juventude dá lugar ao afeto sereno da maturidade, feito uma carne muito dura que se torna tenra e saborosa após horas de cozimento. Ou um vinho muito tânico que ganha elegância e equilíbrio após o estágio em barrica.

O essencial é saber dosar esse tempo de cozimento ou essa passagem pelo carvalho. E ter plena consciência de que, como no célebre soneto de Vinicius, o amor deve ser infinito enquanto dure. Seja aos 30, aos 60 ou aos 80 anos. Como fez Mario Vargas Llosa, que, já octagenário, deu adeus a um casamento de meio século para, segundo ele, viver a sua última oportunidade ao lado de uma mulher bem mais jovem.