'Até para andar com os cachorros, saímos de máscara', diz baiana que vive na China

Confira o depoimento de Patrícia, que mora no país há nove anos com a família

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  • Thais Borges

Publicado em 29 de janeiro de 2020 às 15:42

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo pessoal

É difícil dizer, ao certo, quantos brasileiros estão na China, nesse momento. Nos últimos dias, a Embaixada do Brasil no país estimou que cerca de 70 estejam na província de Hubei – justamente onde fica a cidade de Wuhan, origem da epidemia de coronavírus que já atinge pelo menos 17 países, citando apenas casos confirmados. “A comunidade de brasileiros é imensa. Nós temos muitos amigos espalhados por toda a China. Um único grupo que meu esposo administra no WeChat (aplicativo semelhante ao Whatsapp) tem em torno de 480 brasileiros”, diz a dona de casa Patrícia Rodrigues, 44. Baiana de Salvador, ela vive na China há nove anos com o marido Renato, 46, e os dois filhos – Cecília, 24, e Isaque, 20. A família se mudou quando Renato foi convidado a trabalhar no país pela segunda vez. Antes, ele já tinha morado na China por dois anos. 

Eles vivem na cidade de Shenzhen, no sul do país, a cerca de mil quilômetros de Wuhan. O Brasil, ao contrário de países como Estados Unidos e França, ainda não divulgou nenhum plano de evacuação para os brasileiros nas cidades que estão em quarentena, como Wuhan. A Embaixada do Brasil na China foi procurada pela reportagem, mas ainda não respondeu aos questionamentos. 

Ainda que Shenzhen não tenha sido tão afetada quanto os municípios mais ao norte, Patrícia explica que a recomendação do governo é de que as pessoas evitem sair de casa. Além disso, para evitar mais contágios, o governo da China estendeu o feriado do Ano Novo até o dia 2 de fevereiro. 

“Saímos de farmácia em farmácia buscando máscaras. Quando não encontramos, vimos que a situação era séria", contou.

Confira o depoimento que ela deu ao CORREIO, nesta quarta-feira (29), na íntegra 

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"Viemos para a China entre janeiro e fevereiro de 2011. Estamos fazendo exatos nove anos na China sem voltar ao Brasil. A gente já trouxe minha mãe já duas vezes e meu cunhado vem algumas vezes, mas não voltamos ao Brasil. Meu esposo voltou em 2013 para fazer um trabalho no Brasil por uns 20 e poucos dias, mas só. Desde então, a gente viaja aqui quando pode pela Ásia. 

Sou casada com um mineiro que trabalha no ramo de pedras preciosas. Foi ele que recebeu esse convite, há muito tempo, para vir morar na China. Primeiro, ele esteve por dois anos aqui, enquanto eu morava no Brasil com meus dois filhos. Porém, em 2010, foi chamado novamente. Mas uma das condições para ele voltar era trazer a família, porque era meio que impossível eu continuar sozinha no Brasil com dois adolescentes. 

Hoje, meus filhos fazem universidade. Minha filha Cecília, de 24 anos, faz universidade na Universidade Politécnica de Hong Kong. Meu filho Isaque, de 20 anos, estuda em Xangai. Agora, como é o período de Ano Novo Chinês, os dois estão aqui em casa e não têm a data para voltar para a universidade por conta desse problema (epidemia de coronavírus). 

O feriado chinês, que acabaria à meia-noite do dia 2 e no dia 3 todo mundo voltaria, foi prorrogado parta o dia 10. Ou seja, no dia 10, volta o funcionamento normal. 

[O Ano Novo Chinês começou no dia 25 de janeiro. Assim, o funcionamento voltará ao normal no dia 3 de fevereiro, no calendário gregoriano] 

Hoje, temos supermercados, farmácias, vários estabelecimentos funcionando parcialmente. Alguns não pararam, mas a maioria, como lojas de conveniência, escolas, salões de beleza... Tudo parou pelo Ano Novo Chinês, com essa prorrogação agora por conta da doença. 

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Foi mais ou menos no mês de dezembro que começamos a ouvir a respeito. Não tem aquela data precisa porque a gente não pensa que vai virar algo maior. Começamos a ouvir que era uma doença muito grave até chegar nessa epidemia, nessa situação, tem talvez uns dez dias, talvez um pouco mais. 

Moramos no Sul da China, numa cidade chamada Shenzhen, que tem mais ou menos 18 milhões de habitantes. Aqui, tem um fluxo de gente muito grandes e tem muito estrangeiro também. A vida da gente estava absolutamente normal, mesmo sabendo que o vírus estava por aí, que era sério, que idosos estavam morrendo, porque um problema que afeta principalmente idosos. 

Estávamos convivendo com isso e, na semana passada, até saímos para um passeio em família. Fomos a um café com uns porquinhos. Fomos sem máscaras, tranquilos. Já no dia seguinte a esse passeio, meu vizinho falou para a gente não sair ou não sair sem máscara. Ele começou a me falar que era sério, que era para prestar atenção. Aquilo me fez ficar um pouco mais tensa na sexta-feira passada. Eu já tinha algumas máscaras em casa e já saí usando. Eles (as autoridades) dizem para evitar lugares muito cheios, para não sair sem máscara. Mesmo se você vai só andar com os cachorros – e a gente tem dois cachorros – no condomínio, é para andar de máscaras. Na sexta-feira, eu caí em mim da gravidade da situação quando fui até os elevadores do prédio e todos estavam envelopados, tanto por dentro quanto por fora e com spray de desinfetante. 

Aí, eu caí na real...  Nós começamos a prestar atenção. Saímos para a rua, demos uma volta e notamos que, na farmácia, as pessoas estavam procurando muito por máscaras. A namorada do meu filho ligou Xangai pedindo por uma máscara específica. 

Saímos de farmácia em farmácia buscando. Quando não encontramos, vimos que a situação era séria, que não ia ter máscara. Meu esposo havia trazido algumas máscaras do trabalho, que ele usa para mexer com produtos químicos e começamos a perceber que a situação estava se agravando a cada momento. 

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A gente não estava aqui na época da H1N1 e nem naquela mais grave, a Sars (Síndrome respiratória aguda grave), em 2003. Então, a gente não fazia a menor ideia.A memória que a gente tinha a respeito era das pessoas usando máscaras em todos os lugares e isso era aterrorizante. Ontem, nós tínhamos saído para comprar algumas coisas, eu, minha filha e meu genro. Falei: ‘nós víamos aquilo na televisão há bem pouco tempo e hoje estamos inseridos na situação’. É estranho, mas por não ter nada grave acontecendo ao nosso redor, já que não tem ninguém doente, isso nos deixa, de certa forma, relaxados, no sentido, de sem pânico, sem estresse. 

No momento, a vida está absolutamente normal. Estamos dentro de casa por mais tempo porque o frio lá fora é intenso, temperatura de 10, 11 graus e a gente prefere estar em casa. A falta de pessoas na rua coaduna com o Ano Novo Chinês, quando já fica vazio. A gente não sentiu ainda essa tensão ainda, o que eu creio que deve ocorrer depois do dia 10, quando as pessoas voltarem. 

Porque aqui é uma cidade como são Paulo. É uma cidade muito grande, mas com muito imigrantes de todas as partes do país e do mundo. As pessoas vão para suas cidades natais e só depois do dia 10 que elas vão retornar. Restaurantes estão vazios, supermercados estão vazios, as ruas também. O governo já tem um experiencia e um plano de ação nesses casos de epidemia. Nós somos aconselhados a só sair quando necessário. É lei nesses casos que só se é permitido sair na rua com máscaras. Claro que nem todas as pessoas obedecem a isso, mas a maioria cumpre. Isso é muito efetivo no meu condomínio, porque o prédio é desinfectado regularmente. Ainda ontem, tinha um agente sanitário todo vestido com proteção desinfectando todo o lobby, a entrada do edifício e os elevadores. 

A entrada do nosso condomínio só está sendo permitida aos moradores. É muito comum a gente pedir comida, comprar tudo pela internet. A gente pediu ontem um remédio para minha filha na farmácia, meu menino pediu (um lanche no) McDonad’s. Independente do horário, eles tiveram que descer para pegar na portaria. Isso é de agora. Normalmente as minhas entregas são feitas na porta da minha casa, independente do que seja – pode ser uma máquina de lavar ou um picolé. Agora ninguém entra se não for funcionário do prédio ou morador. Nosso prédio tem duas entradas e só está funcionando a entrada principal. Lá, tem um segurança com um termômetro. É como se fosse um equipamento que mira na testa e já sabe a temperatura da pessoa quando ela entra e quando sai.  Da mesma forma, tem isso no supermercado, metrô e vários outros estabelecimentos. Eles estão aferindo a temperatura e as pessoas só podem entrar com temperatura conferida. Nesse período, a cidade realmente está mais vazia. Então, tem menos pessoas e não há tanto tumulto. Em determinados locais, tem câmeras térmicas que veem a sua temperatura também. 

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No Brasil, é comum fazer compras para 15 dias, até dia 30 dias. Aqui, nós vamos ao mercado fazer compras frescas todos os dias. Eu compro carnes e congelo, mas os chineses não comem nada congelado. Eles não gostam. Vão todos os dias, duas vezes por dia, buscar carne, peixe, ovos, tudo fresco. Mas eu acredito que eles estão diminuindo essa frequência e comprando uma vez por dia, no máximo, ou a cada dois dias. Como brasileiro está ok com comida congelada, eu comprei minhas carnes, congelei e só vou ao mercado se houver necessidade, só para abastecer realmente. É mais pelo fatio de ser desconfortável sair de máscara, por estar muito frio. Mas, agora, aqui são 9h25 da noite (10h25 no horário de Brasília) e meus dois filhos estão fora. Minha filha saiu com o namorado e meu filho com um amigo. Não é aquela situação de pânico. Eu iria ao mercado se houvesse necessidade, mas o período de Ano Novo não tem a rotina. Não tem a necessidade de estar indo ao mercado.Como é feriado, meu esposo fica em casa. Ele provavelmente vai voltar a trabalhar quando o governo emitir o aviso às empresas para funcionar normalmente. Já a faculdade do meu filho, em Xangai, já começa em março, ainda não temos uma data por estar longe. 

A da minha filha é em Hong Kong e houve problemas lá, com as manifestações. Uma das mais universidades mais depredadas e onde os jovens se refugiaram foi a que minha menina estuda. Por isso, esse semestre ela está terminando online desde o ano passado. Creio que, em março, a universidade volta. Depois, ainda precisa de um tempo da universidade para se reorganizar com a estrutura. 

Minhas amigas brasileiras (que moram na China) às vezes entram em pânico. Elas têm medo, algumas porque, quando chegam no mercado, não tem o que elas querem. Mas nada que não seja normal pelo período. Nós moramos em frente à fronteira com Hong Kong e já tem uma fila muito grande para atravessar a fronteira. Antes não tinha, mas as pessoas têm que preencher formulário de saúde, aferir temperatura e só então podem cruzar. 

Os ônibus funcionam normalmente. Enquanto isso, o governo tem emitido avisos para as pessoas que estão voltando de outras regiões passarem no mínimo 14 dias em casa porque é o período de incubação do vírus. 

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Não vou mentir, tem horas que fico com medo. Mas meu medo não é da gente ficar doente. Meu medo é de ter que sair da China às pressas e não poder levar meus cachorros (o Yorkshire Tico e o chihuahua Troy), por exemplo, porque tem uma série de procedimentos para poder tirar eles daqui. Da doença em si eu não tenho esse medo. Essa é uma coisa bem particular minha porque a gente pode ficar doente em qualquer lugar que estiver. 

As pessoas falam muito sobre a China, sobre a falta de cuidado, a falta de higiene e tantas coisas horríveis que as pessoas falam. Mas nós temos um paralelo aqui do lado que é Hong Kong, que é uma das áreas mais incríveis dessa Ásia, com um nível de civilidade, higiene e segurança, exceto o período das manifestações mais violentas. Sempre tivemos Hong Kong como o padrão de tudo que é bom numa cidade. Passamos quatro, cinco anos morando na China sem nunca ter tido problemas de saúde. No primeiro mês que minha filha se mudou para Hong Kong, ela teve um tipo de contaminação por chumbo. A água da universidade estava contaminada porque os canos estavam muito velhos. Ela tinha machucadinhos que infeccionaram. Quando ela foi para o lugar que acreditávamos ser mais seguro, teve um problema gravíssimo. Foi contornado, não teve sequelas, mas meu ponto é esse. Baseado nisso, eu mantenho a minha tranquilidade. 

E observo meus vizinhos – se estão indo, se estão saindo. A gente vai vendo e conversando aqui em casa sobre as medidas que a gente vai tomar ou não.  Meus filhos também estão tendo uma vida normal. Essa semana, o irmão do meu esposo ligou falando para a gente ir embora. Mas minha filha disse que não ia. Eles se sentem muito seguros, por enquanto, aqui. O pânico da situação ainda não chegou até nós".