Aterramento de manguezal e rio causa conflitos em comunidade de Caraíva

Moradores derrubaram cerca que atravessa o rio e isolava o espaço

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  • Gil Santos

Publicado em 15 de outubro de 2021 às 06:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Reprodução

O desmatamento e o aterramento de uma região de rio e de manguezal estão sendo motivos de conflito no distrito de Caraíva, em Porto Seguro, no Extremo-Sul do estado. O processo começou em janeiro e a população afirma que denunciou às autoridades, mas que a ação persistiu. Há dois meses, uma cerca foi colocada e impediu o acesso da comunidade ao rio que corta a região. Indignados, os moradores derrubaram a estrutura, nesta quarta-feira (13), e as imagens tiveram repercussão.

Segundo uma liderança local, que pediu para não ser identificada, o rio e o manguezal passam por dentro de uma propriedade privada que foi vendida no ano passado. O rio era local de encontro da comunidade de Jambreiro, onde vivem cerca de 700 pessoas, e a movimentação nos últimos meses atraiu a atenção dos moradores.

“Primeiro o terreno foi cercado. Depois, começou um entra e saí danado de caçambas carregadas de areia e de barro, foi quando percebemos que ele estava aterrando o mangue e estreitando o rio. O motivo é para transformar o lugar em espaço para eventos, inclusive, ele chegou a fazer alguns eventos durante a pandemia, mesmo estando proibidas as aglomerações”, contou.

Os moradores ficaram com medo dos impactos ambientais e denunciaram o caso para a Secretaria do Meio Ambiente de Porto Seguro. “A primeira denúncia foi feita no dia 26 de janeiro. Eles estiveram aqui algum tempo depois, mas não sabemos o resultado. Se o proprietário foi autuado ele não respeitou a notificação porque depois que as equipes da prefeitura foram embora tudo continuou igual”, contou um morador.

Nesta quarta-feira (13), um grupo de sete homens derrubou a cerca que bloqueava o acesso ao rio. A ação foi registrada em vídeo onde é possível ver alguns deles arrancando a estrutura de madeira a golpes de facão ou com as próprias mãos. Um dos envolvidos, que também não quer ser identificado, contou que agiu no calor do momento.

“Eu fui até lá para ver como estava a situação, mas no caminho encontrei alguns amigos e decidimos retirar a cerca. O proprietário colocou tanta areia que assoreou o rio. Antes, a gente subia o rio de canoa. Ele era largo e mais fundo.  Agora, ele tem um só metro”, disse.  

Nas imagens feitas depois que a cerca caiu é possível ver o chão de areia batida ao lado do manguezal e um pequeno córrego, muito diferente das imagens de arquivo dos moradores que mostram o leito do rio mais amplo e cercado por vegetação. Os nativos contaram que o proprietário tinha uma página na internet em defesa do meio ambiente, mas que após as críticas feitas nos últimos dias a página foi excluída. O CORREIO ainda não conseguiu contato com ele. Rio antes de ser aterrado (Foto: Reprodução)

Reação Em março, os moradores procuraram a Câmara Municipal de Porto Seguro para formalizar a queixa. O vereador Vinicius Parracho (DEM) recebeu as denúncias e encaminhou para a prefeitura. Nesta quinta-feira (14), ele disse que iria acionar também o Ministério Público e contou que um grupo foi criado para discutir esse e outros assuntos relacionados ao Meio Ambiente na região.

“Depois que encaminhei as denúncias para a prefeitura ela ficou de acionar os órgãos competentes, mas não tive retorno. No dia 5 de novembro vamos realizar o primeiro encontro da Frente Parlamentar Ambientalista do Extremo Sul da Bahia, e o objetivo é colocar o tema na centralidade do debate político, discutindo assuntos desse tipo. Ela é formada por vereadores, ONGs, entidades socioambientais e outros interessados”, disse.

Os moradores contaram que procuraram também o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), mas foram informados que o rio e o manguezal estão em uma Área de Proteção Ambiental de responsabilidade do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O CORREIO procurou o Ibama e o órgão afirmou que a competência era da Secretaria de Meio Ambiente da Bahia (Sema), que ainda não se pronunciou.

Já a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Seguro afirmou que, após a circulação do vídeo publicado, procederia com nova vistoria para verificar a ocorrência de novas infrações.

Após a vistoria, realizada hoje, foi constatada a prática continuada das infrações:

•   Art. 48 do Decreto Federal nº 6514/2008: impedir a regeneração natural de floresta atlântica em estágio médio de regeneração, área especialmente protegida – multa de R$ 5.000,00 por hectare ou fração – infração caracterizada pelo aterramento de área protegida; •    Art. 43 do Decreto Federal nº 6514/2008: destruir ou danificar floresta ou demais formas de vegetação natural ou utilizá-las com infringência das normas de proteção em área considerada de preservação permanente, sem autorização do órgão competente, quando exigível, ou em desacordo com a obtida – multa de R$ 5.000,00 à 50.000,00 por hectare ou fração; •    Art. 4º da Lei Federal nº 12.651/2012: considera-se área de preservação permanente, em zonas rurais ou urbanas, para efeitos desta lei: I – as faixas marginais de qualquer curso d´água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para os cursos d´água de menos de 10 (dez) metros de largura; VII – os manguezais, em toda sua extensão – infração caracterizada pelo desvio do curso d´água e sua dragagem, bem como intervenção em área de manguezal sem autorização ambiental. •    Art. 66 do Decreto Federal nº 6514/2008: construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimento, atividades, obras ou serviços utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou contrariando normas legais e regulamentos pertinentes – multa de R$ 500,00 à R$ 10.000.000,00 – infração caracterizada pela construção de canal com supressão de vegetação de mangue, à margem esquerda do Rio Jambreiro, utilizando-se de recursos ambientais considerada potencialmente poluidora sem licença ambiental.

O relatório será encaminhado para análise técnica e jurídica para valoração das infrações cometidas. "Levando-se em consideração a reincidência e continuidade delitiva quando da dosimetria da pena, sendo emitido novo Auto de Infração em desfavor de Luiz Augusto Freitas pela prática das infrações aqui elencadas", diz o relatório.

Além da penalidade pecuniária, a Secretaria informou que deverá recair sobre o autuado a obrigação de reparar o dano e que deve ser apresentado Plano de Recuperação de Área Degradada com o condicionamento de toda e qualquer emissão de nova autorização à apresentação, aprovação e realização do plano.

Ilegalidade O aterramento de área de manguezal não é permitido pela legislação brasileira. O vice-presidente da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), Maurício Campos, explicou que existem ao menos quatro leis que impedem esse tipo de prática no Brasil.

“Temos a Lei de Proteção Nacional do Meio Ambiente, a lei que trata das Unidades de Conservação da Natureza, a lei que protege os Biomas da Mata Atlântica, e a lei que protege a Vegetação Nativa. Por isso não existe previsão legal para essa atividade e acho muito difícil que alguém consiga licença para aterrar manguezais”, afirmou.

Ele contou que mesmo em propriedades privadas é necessário autorização dos órgãos ambientais. Para o biólogo, professor e pesquisador de manguezais, Diego Oliveira, as consequências do aterramento desses biomas são preocupantes.

“Adicionar areia em um segmento argiloso como são os manguezais provoca impactos no ciclo desses biomas, na fauna, na flora e no ecossistema da região. Isso altera os processos bioquímicos, compromete a resiliência do manguezal e pode trazer danos para a comunidade local”, disse.

Ele contou que a situação pode ser ainda mais grave se as alterações impedirem o acesso da água do mar a esses espaços. Segundo os moradores, a cerca construída dentro do rio estava impedindo a passagem também dos animais. “A água salgada é necessária para manutenção da vida nesse bioma. Dependendo do tamanho da interferência isso pode comprometer severamente a capacidade dele se recuperar”, afirmou.

*Com a colaboração de Luana Lisboa