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Da Redação
Publicado em 29 de março de 2023 às 08:30
- Atualizado há 2 anos
“Que poderá haver de mais lindo que essas longas fileiras coleantes de casas alvacentas, uma ao alto, outra à beira d’água – sempre separadas por uma larga faixa de vegetação verde-escuro, no meio da qual se distingue, de vez em quando, uma casinha branca.” Essa foi a vista do reverendo americano Kidder ao chegar a Salvador, pelo porto, entre 1837 e 1840. São descrições assim, de viajantes e cronistas da época, que dão uma pista sobre a cor (ou melhor, as cores) da nossa capital até meados do século XIX.>
De acordo com as arquitetas e pesquisadoras Anna Beatriz Ayroza Galvão e Gina Veiga Pinheiro Marocci, de cujos trabalhos os relatos são transcritos, o termo ‘alvacenta’ não significa, necessariamente, que seja branco. Caiadas também não – a cal feita a partir da queima das cascas de ostras encontradas na Ilha de Itaparica, especialmente, era a base da pintura e, a depender das tintas naturais misturadas a ela, não dava o branco ao final.>
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O imperador do México Maximiliano de Habsburgo foi além da descrição do frontispício e deu uma ideia mais precisa sobre o colorido das fachadas: “As inúmeras casas possuem cores alegres, claras, fazendo com que tudo ria e brilhe”.>
É dele também o relato sobre o extinto teatro São João (1812), na Praça Castro Alves, consumido pelo fogo em 1923: “Nesse terraço, ergue-se o enorme edifício do teatro, com suas paredes amarelo-laranja e suas inúmeras janelas”. Sobre a igreja Nossa Senhora da Saúde, ele escreve: “Naquela ocasião, as paredes estavam apenas caiadas; em 1844, já se pintavam de azul”.>
O que predominou nas fachadas de casas, sobrados e palácios da antiga Salvador, a partir do observado nesses relatos e em fotografias, mesmo em preto e branco, foram os tons pastéis, as cores claras, o branco aí incluído. Essas cores primárias, muitas vezes confundidas com o branco, eram claras também pela ação do tempo e das intempéries que descascavam, manchavam e descoloriam a tintura. Então, havia o azul, o amarelo, o laranja, o verde, o vermelho, o rosa claro, o branco... Painel que recria digitalmente as cores das fachadas da capital no século XIX (Foto: Divulgação Floro Freire) Nos anos 50 do século XIX, o estudo das fotos do Pelourinho mostra a presença da policromia, edifícios geminados e sem recuo frontal e fachadas que se diferenciavam umas das outras pelas cores. Cada casa, uma cor. Isso permaneceu com a reforma do casario dos anos 1980 e 1990, mas o colorido tornou-se exuberante, se valendo da tecnologia e do desenvolvimento da indústria química no século XX.“Não tinha roxos, lilases, rosas de todas as intensidades, fúcsia, vermelhões vivos, amarelo-ouro... Com a reforma, o padrão cromático foi alterado”, explica o professor Luiz Alberto Freire, doutor em História da Arte e que ensina a disciplina na Escola de Belas Artes da Ufba.Já o Elevador Lacerda (quem sabe essa?), um monumento do início dos anos 1870, era branco. Em 1930, ele passa por uma modernização, de duas para quatro cabines e ganha a torre na frente. Sai do estilo antigo para o art déco (aquele que combina o desenho moderno com elementos tradicionais). Com a pós-modernização, no decorrer do século XX, ele se torna amarelo. >
E o que dizer dos outros bairros? Gina e Anna Beatriz destacam: “Nos registros encontrados dos bairros mais afastados do centro de Salvador, pôde ser observado que as casas dos núcleos mais pobres eram, num primeiro momento, pintadas de branco, mas à medida que tais núcleos se adensavam, inclusive com casas de veraneio, aumentava o número das fachadas principais pintadas com outras cores, coincidindo com a introdução de elementos decorativos nas mesmas. É o caso dos bairros do Rio Vermelho e da Barra, onde se comparou fotos de 1870 com fotos de 1885”.>
Destaque Entre as igrejas e alguns fortes da capital baiana, há uma coisa em comum: eram brancos. “Atrás do farol [Santo Antônio da Barra], na ponta mais extrema, rodeada de palmeiras (...) uma das igrejas mais antigas da Bahia, com duas torres graciosas, paredes de um branco reluzente”, relatou Maximiliano de Habsburgo.>
E no caso das fortificações, a alvura não foi à toa, como explica o capitão de fragata Ricardo Magalhães Valois, encarregado do Serviço de Sinalização Náutica do Leste, na Marinha: era para contrastar com o fundo verde, da vegetação, e das outras construções que começavam a ser erguidas, além de facilitar a visualização dos navegadores.>
Só em 1969 o Farol da Barra ganhou listras pretas e um pouco antes disso, de 1939 a 1950, o de Itapuã, que originalmente era cor de terra, vermelho escuro, se tornou branco com listras laranjas, ganhando as listras vermelhas de hoje em 1950.>
Se as fachadas eram brancas, o mesmo não se pode dizer das portas das casas de Deus. O historiador Rafael Dantas, estudioso da iconografia da cidade nos séculos XVIII e XIX, afirma que, em algum momento, se chegou a pintar as portas de acordo com o santo de devoção. Depois, elas foram padronizadas com o chamado verde-patrimônio, com algumas exceções, como a Igreja do Passo, que tem sua porta na cor azul, fazendo referência, provavelmente, ao Santíssimo Sacramento. >
Só mais um detalhe. Ao realizar suas prospecções, que são as pesquisas para descobrir as cores e texturas originais, o restaurador José Dirson Argolo já se deparou com mais de dez camadas de tintas. A coisa vai mudando de acordo com o gosto da época. Nas paredes do Palácio Rio Branco, na Praça Municipal, tem um cantinho onde estão expostas as seis camadas de tinta encontradas por Argolo e sua equipe. Porque funciona(va) assim: cai de moda, e alguém manda pintar de novo de outra cor.>
Este conteúdo especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo jornal CORREIO, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador - Unifacs.>