Baianos com doença rara lutam por remédio que custa R$ 2,2 milhões

Em Teixeira de Freitas, uma criança morreu por não receber medicamento

  • Foto do(a) author(a) Mario Bitencourt
  • Mario Bitencourt

Publicado em 29 de março de 2019 às 14:32

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos de Acervo Pessoal

Famílias de baianos diagnosticados com atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que atinge 1 a cada 10 mil recém-nascidos e ataca o sistema nervoso, impedindo que o paciente consiga respirar ou se mover, buscam ajuda através da Justiça para ter acesso ao medicamento Spinraza (nusinersena), que custa R$ 2,2 milhões no primeiro ano do tratamento.

É o caso de Mariana Silva Pereira, de apenas um ano, diagnosticada com AME aos oito meses de vida. Ela ainda aguarda um relatório médico para poder dar entrada no pedido judicial.“É nossa esperança. A partir daí podemos acionar a Justiça para conseguir avançar e entrar com a ação para tratar minha filha”, declarou a mãe. Mariana tem dificuldade para respirar (Foto: Divulgação) Na Bahia há 62 pacientes com a doença, dos quais apenas cinco estão com processo na Justiça para receber o Spinraza - destes, três conseguiram a medicação por via judicial, segundo a Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores Neuromusculares (Donem), entidade com base em Recife.

Doença degenerativa de origem genética, a AME, segundo o Ministério da Saúde, é caracterizada pela atrofia muscular e degeneração de neurônios motores, levando à fraqueza dos músculos e prejuízo dos movimentos voluntários, como sustentar a cabeça, sentar e andar. A doença tem graus que variam de 0 a 3 (de acordo com a idade) e, quanto menor o número, mais severa ela é.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), doenças raras são aquelas que afetam até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos. Segundo o Ministério da Saúde, as doenças raras, incluindo a AME, não possuem notificação compulsória no Brasil e, deste modo, não é possível saber o número de portadores do problema.

Segundo a Donem, são 3.900 casos de pessoas com AME no Brasil, sendo 1.500 só no Nordeste. Parceira do grupo, a Associação dos amigos da AME (AAME), no Rio de Janeiro, diz que ao menos 110 dos portadores já conseguiram na Justiça decisão para o governo fornecer o medicamento no país. Outros cerca de 600 buscam o mesmo, mas ainda não tiveram resposta.

O remédio De acordo com o Ministério da Saúde, o Spinraza é indicado para crianças com até 7 meses, com AME tipo 1, sem necessidade de assistência respiratória, e crianças de 2 a 12 anos, portadoras do AME tipo 2, também sem necessidade de assistência respiratória, sem escoliose ou contraturas.

No primeiro ano precisam ser aplicadas seis ampolas do medicamento, e nos anos seguintes, três. No mercado privado cada ampola custa R$ 370 mil, já o governo federal tem o valor de R$ 209 mil como máximo a ser pago na ampola, conforme definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), do Ministério da Saúde.

O medicamento é importado e não possui venda direta no Brasil. Se uma pessoa quiser adquirir a droga de forma particular, tem de fazer a solicitação diretamente no laboratório do fabricante, que envia o Spinraza por meio de empresas credenciadas.

Fabricado pelas empresas Vetter Pharma - Fertigung GmbH & Co. KG, da Alemanha, e Patheon Itália S.PA, da Itália, o remédio teve a autorização de comercialização no Brasil por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em agosto de 2017, mas não foi incluído na lista de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS).

O Ministério da Saúde estava em fase de consulta pública para receber contribuições da sociedade sobre o uso do medicamento até esta quinta-feira (28). Depois disso, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) fará uma avaliação e definirá a recomendação para a assistência no SUS sobre o medicamento.

Em 2018, o Ministério da Saúde diz que realizou a compra de 488 frascos da substância para atender a 90 demandas judiciais solicitadas junto à União, com um custo de R$ R$ 115,8 milhões. No primeiro ano, o medicamento precisa ser aplicado seis vezes e, nos anos seguintes, três. 

Doença pode matar A AME é grave e a ausência do medicamente pode levar o paciente à morte. Foi o que aconteceu com o baiano Emannuel de Jesus Cinza, de oito meses, que morreu nesta segunda-feira (25) em Teixeira de Freitas, no extremo sul.

A família do bebê, que foi diagnosticado com a doença aos dois meses, conseguiu decisão da Justiça Federal no dia 23 de novembro de 2018, determinando que a União fornecesse o medicamento no prazo de 90 dias. A União recorreu, a doença se agravou e o menino não resistiu.

O governo já reconheceu, por meio da Anvisa, que a doença não tem opções terapêuticas no país, fora o uso do Spinraza. Mesmo assim, pacientes com decisões judiciais favoráveis, como a de Emannuel, não conseguem ter acesso ao remédio. Emannuel morreu sem receber o medicamento para a doença (Foto: Divulgação) A negação do remédio ao bebê, mesmo com ordem judicial, gera indignação na família, que se queixa também da demora no julgamento do processo. "Logo que a doença foi diagnosticada, entramos na Justiça e ficamos meses esperando a decisão”, declarou o operador de máquinas Wellington Cinza, 35, pai do menino.“A sensação que temos, diante dessa situação, é de impotência. Fizemos de tudo para que meu filho tivesse acesso ao medicamento, que sua vida fosse prolongada por mais uns anos, tivemos uma decisão judicial, mas ela simplesmente não foi cumprida. Meu filho morreu porque não teve um direito atendido”, afirmou.Por meio de nota, o Ministério da Saúde informou que “a pasta já tinha iniciado o processo de compra do medicamento Spinraza, conforme determinação judicial”.

O caso de Emannuel mobilizou várias pessoas do Extremo Sul da Bahia, que buscaram alternativas para arrecadar o dinheiro para conseguir o remédio, como a venda de rifas, realização de eventos, vaquinhas, bazares e recebimento de doações em dinheiro.

O pai do garoto, que trabalha numa empresa em Mucuri, também no Extremo Sul, informou que as doações que recebeu serão repassadas para outras famílias que passam pelo mesmo problema de Emannuel. “Durante esse tempo, conhecemos muita situação parecida com a nossa. Então, agora nós vamos auxiliar essas pessoas também”, disse.

Apesar da perda do filho, a luta do pai do garoto não chegou ao fim. “Vamos entrar com outro processo contra a União por conta do não cumprimento dessa decisão. Queremos que o caso dele sirva de exemplo para que outras famílias não deixem de ser atendidas. Vamos honrar nosso filho”, completou Wellington.

Sem receita A família de Mariana Silva Pereira, de apenas 1 ano, ainda não tem prescrição médica para solicitar o medicamento. Natural de Serrinha, Centro-norte da Bahia, a menina ficou internada dos 4 aos 8 meses de vida no Hospital Estadual da Criança (HEC), em Feira de Santana. Foi na unidade de saúde, segundo a família, que ela foi diagnosticada com AME, mas o médico que a atendeu não receitou o Spinraza. Mariana aguarda relatório médico para que família possa acionar a Justiça (Foto: Divulgação) “Em contato com outras famílias, vimos que essa situação está ocorrendo muito na rede pública. Fica evidente que os médicos estão sendo pressionados a não darem relatórios com recomendações para tratamento com o Spinraza por conta do alto custo”, disse a dona de casa Ane Michele dos Santos Silva, 34, mãe de Mariana.

A dona de casa, que tem outros três filhos pequenos, procurou o Ministério Público da Bahia (MP-BA) em Serrinha, mas só poderá dar entrada no pedido judicial se apresentar um relatório médico com recomendação do uso de Spinraza. A criança terá uma consulta neuropediátrica no dia 11 de abril, no Hospital Martagão Gesteira, em Salvador. O atendimento será pelo SUS.

Segundo a dona de casa, a família tem recebido apoio do Estado da Bahia e da prefeitura com equipamentos para respiração e profissionais de saúde, além de outros medicamentos de custo menor. Ane Michele tem recebe R$ 536 do programa federal Bolsa Família e seu marido está desempregado.

Procurado para comentar o caso, o MP-BA não respondeu ao CORREIO.

Em Serrinha, estão sendo feitas campanhas de doações e eventos para arrecadar os R$ 2,2 milhões para a compra do remédio. 

“Esse alto custo do medicamento tem prejudicado muito o acesso. É algo que ninguém fala abertamente, mas que temos acompanhado sempre, no nosso cotidiano, ouvindo pessoas falarem sobre médicos que se recusam a dar a receita, seja do SUS ou que atendem por meio de planos de saúde”, disse Aline Giuliane, membro do conselho diretor da AAME. Íris, 14 anos, diagnosticada quando tinha um 1 e meio: só conseguiu prescrição para uso do Spinraza em dezembro do ano passado (Foto: Acervo pessoal) Moradora de Uberlândia (MG), Aline é mãe de Íris, de 14 anos. A adolescente tem o tipo 2 da doença (menos severa) e foi diagnosticada quando tinha um ano e meio. Apesar disso, ela só conseguiu a prescrição para uso do Spinraza em dezembro do ano passado, quando foi a um médico no Rio de Janeiro. 

A mãe da garota entrou na Justiça este ano para conseguir acesso ao medicamento, mas ainda não houve decisão.“Minha filha mantém as terapias, mas nunca andou e já passou por cirurgia de coluna. A doença é muito séria, além do medicamento precisar ser mantido, para que os ganhos possam ser mais visíveis”, disse. “Mas notamos que outras crianças que usam o medicamento possuem uma vida praticamente normal”, completa.A empresária Suhellen Oliveira, 36, é a criadora da Donem – Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores Neuromusculares. Ela tem um filho de 6 anos portador da AME tipo 1 e conseguiu o medicamento após acionar a Justiça contra um plano de saúde.

“Ele toma o medicamento há um ano. Antes, ele perdia movimentos todos os dias, até da face, e ficou com algumas sequelas. Quando ele começou com a medicação, o problema apresentou certa melhora. Antes, ficava de 20 a 24 horas no respirador, hoje fica 6 a 8 horas, só pra dormir. Melhorou até a voz”, relatou.

Recomendação A médica Cecília de Almeida Araújo, neuropediatra do Núcleo de Neurologia da Bahia e do Hospital São Rafael, em Salvador, disse que o medicamento está sendo utilizado em escala maior no Estados Unidos, mas, no Brasil, são doses fracionadas e ainda não se faz o tratamento completo.

Segundo a especialista, o remédio tem como função repor a proteína SNM, que teve seu funcionamento normal prejudicado pela mutação dos genes SNN1 e SNN2, responsáveis pela fabricação desta proteína, cuja ausência afeta o funcionamento dos neurônios motores inferiores, levando por consequência à fraqueza muscular.

A especialista diz ainda que “em crianças que fazem o tratamento, é possível ver avanços, porque o medicamento repõe a proteína defeituosa que está no gene”.

“Os pais, mesmo não apresentando a doença, podem carregar o gene com defeito, e quando se associa o gene do pai com o gene da mãe essa alteração leva a uma mutação dos genes”, disse, informando que ainda não chegou a receitar o Spinraza por não atender pacientes que precise do mesmo, mas “havendo necessidade, o faria”.

Informou ainda que não está ciente da acusação de que colegas teriam sofrido pressões por parte do SUS ou de operadoras de planos de saúde para não receitar o Spinraza.

O Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) também informou que não há queixas no órgão nesse sentido.

Já o Ministério da Saúde disse, por meio de nota, que "a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras prevê Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS)".

Dentre elas, estão 15 exames de biologia molecular, citogenética e imunoensaios, além do aconselhamento genético e procedimentos de avaliação diagnóstica na tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS.

Segundo o ministério, a medida "tem como objetivo reduzir a mortalidade e incapacidade causadas por essas doenças, bem como contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas com doenças raras".

A política está organizada no conceito das Redes de Atenção à Saúde, considerando-se todos os pontos de atenção, bem como os sistemas logísticos e de apoio necessários para garantir a oferta de ações de promoção, prevenção, detecção precoce, diagnóstico, tratamento e cuidados paliativos, de forma oportuna, para as pessoas com Doenças Raras, incluindo a AME.

“O Ministério da Saúde também reforça que, independentemente da habilitação de serviços em doenças raras, o SUS oferece procedimentos para os pacientes acometidos por AME. Além disso, a pasta atende a todos os pedidos para aquisição de medicamentos e tratamentos exigidos por demandas judiciais”, completa o documento.

O CORREIO tentou contato com a Abramge, entidade que representa no Brasil as operadoras de planos de saúde, para questionar a suposta pressão para que os médicos não receitem o Spinraza, mas não obteve retorno.