Bariátrica: uma decisão radical, que me faz viver com alguns limites

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  • Gabriela Cruz

Publicado em 17 de novembro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

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Eu tenho 44 anos e sempre fui uma pessoa gorda. Desde criança. O primeiro bullying que sofri foi aos cinco anos e só piorou no primário. Não adiantou ir para outra escola no ginásio. Mudou o local, mas as brincadeiras e piadas continuaram a me perseguir. No segundo grau me tornei uma criatura estranha, que fugia do convívio com os colegas. Eu só queria que aquilo acabasse. E olha que nem era uma “gorda maior” ainda. Usava manequim 44.

O problema é que sempre tive personalidade forte a condição de gorda atrapalhava meus planos exibidos. Cresci acreditando que não ia dar para ser quem eu queria com aquele corpo. Lembro que minha primeira dieta foi aos 14 anos e, quando entrei na faculdade aos 16 fiz de tudo para arrumar um estágio e ter grana para comprar remédio para emagrecer. Em casa, a cobrança por um peso menor também existia, mas nada insano como o que eu vivia na escola. Não sobrou quase ninguém daqueles tempos que eu faça questão saber que fim levou.

O bullying marca a vida para sempre e te leva a pensamentos e decisões terríveis.

Estava tão obcecada com meu corpo que consegui emagrecer e passei os anos de Facom – eu sou jornalista formada pela Ufba – usando manequim 40 e contando cada caloria ingerida. Mas entrar no mercado de trabalho e atender as demandas da profissão desencadearam em mim uma compulsão por comida que fez meu manequim chegar ao 48 em alguns anos. Nessa época não havia tanta facilidade para comprar roupa nem redes sociais com gente parecida comigo para servir de parâmetro. Até que eu ouvi falar da cirurgia bariátrica. Uma colega fez e estava ótima, plena e tomando bons drinques. Eu percebi ali uma chance de ser feliz finalmente e não tive nenhuma dúvida de que aquela era a minha única saída.

O processo de preparação da cirurgia durou alguns meses. Lembro que a primeira vez que entrei na clínica foi para participar de um encontro com várias pessoas com o mesmo objetivo que eu: operar, emagrecer e voltar a sorrir. Nesse momento eu já pesava mais de 100 quilos (tenho 1,54m de altura) e vestia manequim 54. Ouvindo aquelas histórias, entendi que não estava só. Os resultados dos exames pré-operatórios me assustaram porque finalmente entendi que era uma questão de saúde também e urgente. Ouvir que suas taxas estão altas e que você poder ter alguma doença como diabetes deixa você em alerta. Não tive medo de fazer a primeira cirurgia da minha vida e hoje, 12 anos depois, sigo consciente de que não errei na minha escolha. Muito pelo contrário.

Mesmo assim, não foi e não é fácil. O pós-operatório foi angustiante. Ficar 15 dias em dieta líquida e depois pastosa quase me enlouqueceu. Eu sonhava que estava mastigando, mas aí ouvia relatos de gente que tinha tido algum problema sério e agradecia a Deus por estar bem. Alguns anos depois, o anel que coloquei para controlar a passagem do alimento “virou” no esôfago e passei a vomitar tudo que comia. Precisei ir para a sala de cirurgia removê-lo. Já estava tão safa, que encarei essa situação sem pânico. Eu parei de ter medo de morrer. Mas nunca quis fazer nenhuma cirurgia reparadora, como remoção de excesso de pele ou plástica de mama. Não sei porque. Apenas não quis.

Para além disso, meus dentes não são mais os mesmos. Acredito que por não absorver bem os nutrientes e não tomar as vitaminas corretamente (total culpa minha), as cáries surgem de forma agressiva, exigindo idas constantes ao dentista, o que nem sempre garante a salvação daquele dente. Já foram três perdas nessa batalha estranha.

O prazer em comer também diminuiu. Não consigo terminar nenhuma refeição. Simplesmente me desinteresso pela comida e sempre sobra no prato. Se tiver algo gorduroso ou com muito açúcar, o dumping – mal-estar que abate quase todo mundo que faz bariátrica – é certeiro. Daí em diante não serei a mesma por, pelo menos, uma hora, até voltar ao normal. O mesmo acontece quando ingiro bebida alcoólica.

Aquela satisfação que comer um brigadeiro ou um acarajé me dava – quase não como mais doces e frituras hoje em dia - migrou para outras coisas, como comprar, por exemplo. Sorte minha que meu foco são objetos “baratos”, como material de papelaria. Também adoro inventar uma coleção só para ir em busca da peça que falta. A nova obsessão são as Barbies gordas. Já tenho oito. Tatuagens são 25, todas feitas nos últimos anos.

Hoje, com o peso estabilizado em 83 quilos e manequim 46 (sim, continuo gorda), minha vida segue um ritmo frenético por conta da forma como decidi vive-la. Não tem tempo ruim para mim: chamou, eu vou, seja para uma festa, um trabalho extra ou qualquer coisa que me dê prazer em viver. Não faço terapia, o que é uma falha. Acredito hoje que é fundamental para quem muda o corpo dessa forma tentar entender e absorver essa transformação, mas eu já busquei esse auxílio e não consegui seguir adiante.

A sorte é que ao longo desses 12 anos muita coisa mudou na forma como a obesidade é encarada. Hoje, o olhar para o corpo gordo é outro – seja escancarando a gordofobia para expor os agressores ou entendendo é apenas mais um corpo, nem pior nem melhor que nenhum outro. Simplesmente porque não é. Hoje eu sei lidar com os ataques. Sim, eles seguem acontecendo.

Eu hoje sou feliz como o corpo que tenho. Aprendi a amar as “imperfeições”, cicatrizes e tudo que acumulei nessas mais de quatro décadas, inclusive minhas escolhas, porque elas fazem de mim o que sou hoje. Quando me perguntam se eu faria a cirurgia novamente, digo que sim, mas com a cabeça que tenho atualmente, sabendo dos riscos, da necessidade de ajudar o processo, porque quem toma essa decisão radical na vida precisa estar preparado para viver com alguns limites. Gabriela Cruz é jornalista e editora de Conteúdo do Estúdio Correio