Bob Dylan e o espírito do nosso tempo

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  • Paulo Sales

Publicado em 6 de abril de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Após oito anos, o bardo judeu romântico de Minnesota voltou a lançar uma canção inédita na semana passada. Com 16 minutos, 56 segundos e nada menos que 1.376 palavras, Murder Must Foul é um mergulho memorialístico na década que transformou o jovem anônimo Robert Allen Zimmerman no ícone Bob Dylan. Seu fio condutor é o assassinato de John Kennedy em praça pública, em novembro de 1963, mas seus versos formam uma espécie de inventário da cultura popular norte-americana ao longo do século passado. Estão lá, entre tantos outros, Beatles, Charlie Parker, Marilyn Monroe, Buster Keaton. E também Woodstock e Altamont, auge e derrocada da era de Aquarius.

Ouço pela terceira vez Murder Must Foul enquanto escrevo este texto. Não se trata, a despeito da duração, de uma grande canção. Algumas passagens são um tanto óbvias e a melodia é pouco inventiva. Mas há uma melancolia e uma sensação de passagem inevitável do tempo – com tudo que ela traz em perdas e desalento – que a tornam uma espécie de réquiem para uma era. A mesma era que Dylan prenunciou em The Times They're A-Changing, justamente no ano em que Kennedy morreu. É como se uma desse início e a outra pusesse um ponto final em quase 60 anos de aspirações utópicas que desaguaram em som, fúria, equívocos e frustrações.

Violino e piano fazem a cama para a voz grave de Dylan despejar versos em profusão, lembrando ao mesmo tempo Leonard Cohen, Lou Reed e os poetas beats, sobretudo Allen Ginsberg. Há frases intensas e duras, como “Eu odeio dizer, senhor, mas só homens mortos são livres” ou “A era do anticristo acabou de começar”. Segundo o jornalista Ivan Finotti, da Folha de S.Paulo, o título faz referência a uma passagem de Hamlet, sobre um “assassinato ainda pior” (no caso, do pai do herói shakespeareano pelo irmão). O que isso significa? Não faço a menor ideia. Dylan sempre se expressou por meio de parábolas e metáforas difíceis de compreender.

Mais do que isso, seus versos possuem algo que considero fundamental em um artista: a capacidade de captar o zeitgeist, ou espírito do tempo. Dylan é fruto do meio em que foi forjado, das canções de protesto do ídolo Woody Guthrie, que cantou como ninguém os herdeiros falidos do sonho americano. Mas sua obra reflete acima de tudo o momento em que ele desponta para o mundo, cantando as respostas que sopram no vento a uma geração que ansiava por respostas para sua avassaladora angústia existencial. Não por acaso, foi alçado tão jovem à condição de arauto dessa geração, algo que com o passar do tempo o incomodou. Dylan não era o arauto de uma geração, era o arauto de si mesmo.

Agora, já chegando ao final do texto, ouço outras canções essenciais do velho bardo: Mr. Tambourine Man, Like a Rolling Stone, Hurricane e aquela que é a mais bela, A Hard Rain’s A-Gonna Fall. Escrita aos 22 anos numa época em que o mundo poderia ter implodido. Sim, aos 22 anos ele foi capaz de cometer versos como: “Ouvi dez mil sussurrando e ninguém ouvindo. Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muitas pessoas rindo. Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta. Ouvi o som de um palhaço que chorava no beco”. Não por acaso, qualquer canção que venha a lançar será por si só um acontecimento. Dylan permanece um gigante, um mestre a quem devemos reverenciar de tempos em tempos.