Brasil, a nau que ruma ao abismo

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  • Paulo Sales

Publicado em 31 de maio de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Em Moby Dick, Herman Melville narra um embate de contornos bíblicos entre o homem e a natureza selvagem, feroz e libertadora, representada pelo cachalote branco. O capitão Ahab e a baleia Moby Dick se irmanam numa fúria mútua, cega e destrutiva. Não sei se carregam um carma demoníaco, uma maldade intrínseca à qual são incapazes de resistir. É provável que não.

Pelas pistas deixadas por Melville ao longo do livro, ambos são apenas títeres nas mãos de um ser supremo, e promovem nas águas do Oceano Pacífico a encenação de uma tragédia escrita no princípio do mundo. Daí o acento fatalista que acompanha a obsessiva jornada da nau Pequod rumo à própria destruição, como se outro destino fosse impensável.

Por tudo isso, seria um reducionismo dizer que Ahab representa a insanidade que habita as sombras de cada ser humano. Seu ódio está a serviço de algo muito maior, que ele não consegue apreender. Uma mão invisível que o empurra na direção da baleia, por mais que intimamente saiba que deve fugir dela. “Oh, morte solitária em vida solitária! Oh, agora eu sinto que minha mais alta grandeza jaz em minha mais alta mágoa”.

Moby Dick talvez seja o mais bem acabado monumento literário capaz de representar uma descida ao inferno. Há, claro, o clássico de Conrad, O Coração das Trevas, outra travessia por águas desconhecidas e temerárias. Já no campo da vida real temos um paralelo igualmente tenebroso à saga de Melville: o nosso genocídio silencioso.

Cegos e enfurecidos, afundamos rumo à zona abissal guiados (o termo não é o mais adequado) por um capitão em estado de demência, rodeado por Eichmanns em potencial desempenhando metodicamente funções macabras. Com uma diferença: o nosso Ahab não possui grandeza nem se sacrifica junto com a sua tripulação. Pelo contrário: ele a manda pular no mar, enquanto observa entre sorrisos e frases de desdém. É sórdido, cínico, sádico.

Somos como Ismael, o narrador de Moby Dick, perplexos diante do que se avizinha e temerosos do próprio destino em um país que agoniza e morre, para parafrasear o sambista Nelson Sargento, que nos deixou na semana passada vítima do leviatã que atende pela alcunha de covid-19. No lugar de um enorme cachalote albino, temos um vírus mutante invisível. Ah, e um verme maldito.

Ao invés de um bravo e ensandecido comandante, nosso Ahab tropical mais se assemelha a uma solitária que foi engordando lentamente dentro do organismo vivo que é o Brasil. Como um parasita a princípio quase inofensivo, com suas diatribes de louvor a torturadores e seus modestos esquemas de corrupção. Mas essa solitária cresceu e está matando o seu hospedeiro. É uma analogia muito menos nobre que a do capitão e seu navio suicida, porém certamente mais adequada ao indivíduo em questão.

Fico me perguntando se precisamos realmente continuar singrando mares tão bravios em meio à tempestade, até que, ao final do próximo ano, possamos voltar a águas tranquilas – se é que voltaremos. Na dúvida, não seria o caso de defenestrar logo o verme, alijá-lo do poder e da obsessão por continuar nos matando? Afinal, há ainda um ano e meio pela frente. Como bons piratas, poderíamos invadir, pilhar, tomar o que é nosso. Colocá-lo para andar na prancha e despencar no mar profundo, para que os tubarões façam bom proveito.