Cabelo não é a força e sim a fraqueza de (quase) toda mulher

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • D
  • Da Redação

Publicado em 2 de abril de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Além de tudo que foi escrito e falado, sobre o tapa de Will Smith, na cerimônia do Oscar, percebe que a piada escrota, o catiripapo, a polêmica, tudo isso só aconteceu porque mulher “precisa” ter cabelos? Não só ter, mas, também, cuidar deles como se disso dependesse a vida. O tratamento que se dá ao cabelo feminino ganha contornos específicos, a depender de muitas questões (religiosas, étnicas, culturais, familiares...), mas está sempre ali. Impositivo, obrigatório, assunto incontornável desde que somos criancinhas. Né muito limitante isso, não?   Tem que ter cabelo. Também pintar, amarrar, trançar, enfeitar, alongar, reconstruir, nutrir, hidratar, fazer uma infinidade de procedimentos que, normalmente, custam muito tempo e/ou dinheiro. Mulheres se endividam por causa de cabelos, gastam anos da vida, cuidando de cabelos, alimentam uma indústria de números vultuosos, ficam felizes ou arrasadas por causa dos cabelos. Não tô discutindo gostos pessoais nem desejos. Nem venha com “também tem homem que cuida muito de cabelo e mulher que nem liga pra isso”. Quero falar sobre regra e não exceção, sobre obrigações, expectativas e crueldades específicas. 

Todo mundo sabe que o caso de Jada Pinkett é alopecia, que ela não escolheu estar careca, que há dor em todas as perdas. É chato ser obrigada a uma imagem que não se deseja. Pode parar de explicar que eu já sei. Mas, observe. A alopecia, em si, não é incapacitante nem mata ninguém. O único sintoma é perder os cabelos. É só isso que a doença faz. Então, a palavra “drama”, colocada ao lado do nome da atriz, diz muito mais sobre nosso olhar para mulheres do que sobre a doença em si. Percebe? 

 (“Mas ela mesma disse que é drama!!!”... Tenha calma e termine de ler.) 

Bruce Willis não tem um fio de cabelo naquela cabeça. Deve ter alopecia também. Ficou carequíssimo. Faz bastante tempo que ele não tem cabelo, mas a palavra “drama” só foi colocada ao lado do nome dele, nesta semana, depois da interrupção da carreira por causa de um diagnóstico de afasia. Afasia é um distúrbio de linguagem que afeta a capacidade de comunicação da pessoa. Vê a diferença? No mesmo ambiente onde Jada circula, a careca do ator nunca, que eu me lembre, foi citada como problema. Pelo contrário, aliás. Sex simbol, inclusive.

 (Nesse contexto, qual a chance de Bruce Willis falar da própria alopecia como “drama”? Zero ou menos ainda? Me deixe.) 

Vou ilustrar mais um tantinho. Em tratamento contra o câncer, muitas mulheres dizem que o pior momento, entre todos, é perder os cabelos. Tanto que a ficção repete isso, quem não lembra da cena da novela, Camila (Carolina Dieckmann) raspando a cabeça e fazendo o Brasil chorar? Evidentemente, não estou aqui pra questionar a dor individual de ninguém, compreendo bastante até. Somos seres sociais, o olhar do outro nos impacta, não estou dizendo que mulheres não “podem” sofrer por perder cabelos ou que devam disfarçar esse sofrimento.  É legítimo. 

 O motivo desse sofrimento é que me incomoda. Justamente o “olhar social”, o modelo que alimentamos todos os dias e nos resume a uma “coisa” até quando estamos lutando pela vida. Não consigo achar normal que, durante o tratamento contra um câncer - um processo tão difícil - perder cabelos, para mulheres, seja uma dor tão grande. Não é justo que seja assim, não é saudável. Pra mim, não é sequer admissível que a gente seja convidada a viver nessa superficialidade. Principalmente, quando me lembro de que homens só precisam se preocupar com cuidar da saúde, quando estão na mesma situação. O que já é suficientemente desafiador pra qualquer um/a. 

É só cabelo. Eu sei que dizer “raspo os meus e adoro” é uma frase bem tola, já que tudo é ótimo quando se faz por opção. A verdade é que raspo e com alegria, mas o fato aqui não é esse. O que importa é que, quando passei a máquina, pela primeira vez, aos 19 anos, descobri o quanto é perturbadora uma mulher sem cabelos. Teve minha mãe chorando, amiga dizendo que “os homens não gostam” (hahahaha), gente sem saber se eu era homem ou mulher e me sacaneando por isso. Eu? Plena. Adoro o conceito de androginia. Passei anos careca e amando. Deixei crescer, raspei mais algumas vezes, raspo ainda. É sempre divertido, principalmente pela interação com o outro que ganha contornos engraçadíssimos.

 A experiência me ensinou - e adoro isso - que as pessoas têm é medo de mulheres carecas, seja qual for o motivo da falta de cabelos. Desde as que não disfarçam uma careca inevitável até aquelas que, como eu, optam por raspar a cabeça, todas causam certo incômodo, algum desequilíbrio no ambiente. Provocam olhares indisfarçáveis, estranhamento, chamam a atenção de um jeito bem específico que interpreto há anos. É como se as pessoas pensassem “se ela é capaz de andar por aí sem cabelos, pode fazer qualquer coisa”. Errados/as não estão.

 Minha amiga, em plena quimioterapia, foi uma exceção. Disse que escondia a careca por causa das outras amigas que ficavam arrasadas. Ela mesma estava se achando bonita. “Como assim, ‘bonita’ sem cabelos?”, essas mulheres deviam pensar e o abalo nas certezas confortáveis de cada uma delas era inevitável. Deviam sentir medo, né? De “perder” a amiga para o mundo supreendente das mulheres que não se importam com o que “deviam” se importar. Do que, a partir dali, ela seria capaz? 

Seja por vontade ou de forma compulsória, o “perigo” da careca é a possível descoberta de que não precisamos de quase nada que o mundo nos oferece como “feminino”, para exercer o feminino. Não precisamos nem do “maior símbolo de feminilidade”. Podemos até não gastar um centavo nem um minuto da vida cuidando de cabelos e tá tudo bem. Um salto imenso, poder incrível! Quando chega nisso, pronto, acabou. Caminho sem volta porque você sequer se importa com comentários e olhares tortos. É um “foda-se” retumbante. Aí, não sabem o que fazer com você além de olhar com aquela cara de “que diabo é essa mulher?”. É o olhar que mais me diverte, confesso. “Cabulosa”, ouvi uma vez e amei! Dou risada demais. 

É apenas cabelo. Pode ter, pode não ter. Pode pintar, pode deixar grisalho. Pode cortar, pode deixar crescer. Pode alisar, trançar, cachear, mudar de ideia mil vezes. É pra se divertir. É só cabelo. Essa descoberta - que eu fiz há tanto tempo e hoje me parece banal - muda a rota de qualquer mulher. Inclusive porque ensina que, se perder cabelos for inevitável, isso não precisa ter o nome de “drama” nem obrigar ninguém a usar peruca nesse calor infeliz. A pessoa pode até se achar mais bonita com cabelos - eu me acho mais bonita com a cara que eu tinha aos 30 anos - mas paciência. É só uma questão, entre tantas. Não precisa ter tanta importância, se você entende que o olhar do outro pode até lhe impactar, mas quem decide o peso dele é você. 

Do jeito que lidamos com ele, cabelo não é a força e sim a fraqueza de (quase) toda mulher. Vulnerabilidade. Símbolo máximo de submissão. Força é liberdade de escolher e prescindir. Não existe força alguma no que se cumpre por medo de rejeição. No que escraviza, limita, obriga, preocupa. Algumas mulheres dizem “eu queria raspar, mas não tenho coragem”, “queria deixar grisalho, mas não consigo”, “meu marido não gosta que eu corte” (oi?). Por exemplo. Se precisa de coragem é que há algo muito difícil a enfrentar. É sobre esse “algo muito difícil” que fiquei pensando aqui. Por que a gente ainda permite, afinal? 

Também fiquei respondendo, mentalmente, outra vez, aos dois cabras que me disseram, irritadinhos “tudo em você é feminismo”, nas últimas semanas. Tão vendo? É por isso. Porque não tem como achar esse lugar, que me reservam, sequer digno, que dirá confortável. Quero não. Tô fora. Lidem com isso, problema não é meu. Agora, vou tomar um banho e lavar os meus cabelos que, por acaso, estão mais longos. Mas podiam não estar. Talvez não estejam mais aqui, amanhã. É só cabelo, enfim. Nada de mais. Pelo menos pra mim. 

(Mais: até aviso, mas nunca consultei maridos ou namorados sobre qualquer decisão que tomo em relação a qualquer parte do meu corpo. Sobre cabelos, quando dá vontade, apareço de cabeça raspada e o problema é só deles se não gostarem. Não sou uma boneca inflável que precisa atender ao desejo do freguês. Se não me vê como uma PESSOA, se pique. Não presta pra mim.)