Cabocla trans, tretas e maldições: conheça todos os caboclos da Independência

Ao contrário do que muita gente pensa, a Bahia não possui apenas o caboclo e cabocla que saem todo ano da Lapinha para o Campo Grande, em Salvador. Outros municípios têm seus representantes com muita história e treta também

Publicado em 2 de julho de 2022 às 07:00

. Crédito: Fotos : Sora Maia/CORREIO

Para quem estava crente que o tradicional desfile do caboclo e da cabocla na comemoração do 2 de Julho era um privilégio exclusivo da capital baiana, pode tirar a carrocinha da rua. Se a Bahia tem sua própria independência, seria muita inocência achar que só existe um casal de caboclos no estado, né? Para ser mais exato, são 17 figuras simbólicas que neste momento também estão sendo reverenciadas em diversos municípios baianos, em desfiles cívicos com muita história, tradição, casos, tretas, amores e maldições.

Ao todo, são 15 cidades com pelo menos um caboclo ou cabocla que desfilam no 2 de Julho. Pela própria participação direta na luta contra os portugueses, a maioria das imagens estão na região do Recôncavo. Contudo, é possível ver as entidades homenageadas em lugares que sequer tiveram alguma relação na caminhada da independência, como Itacaré e Valença. Aliás, para iniciar logo com uma polêmica, o que você faria se soubesse que a cabocla da capital, esta mesma toda formosa que puxa o cortejo neste sábado, pode nem ser a original dos primeiros anos das comemorações? 

“Os mais antigos diziam que esta cabocla daqui de Salvador é, na verdade, de Valença. Ela veio para capital para dourar a madeira, pois estava ficando envelhecida. Mas acharam ela tão bonita, muito mais do que a original da capital, que decidiram trocá-las, mandando a original de Salvador para Valença, onde também desfila no 2 de julho. Foram trocadas!”, conta o filósofo e professor de História na Universidade Federal da Bahia (Ufba), Milton Moura. “Não tem comprovação do fato, mas é uma das ‘lendas’ que gira em torno dos donos da independência, que são os caboclos e caboclas espalhados pela Bahia. Se engana quem acreditava só existir esta tradição na capital. É muito forte no interior, principalmente no Recôncavo baiano”, acrescenta.  

Para Milton Moura, é preciso colocar na cabeça do soteropolitano que devemos falar de Festas de Independência, no plural mesmo. Inclusive, nem sempre a data comemorada é no dia 2 de julho, mas sempre está relacionado à luta contra os portugueses. “São diversas particularidades que chamam atenção. A Festa do Caboclo de Cachoeira acontece no dia 25 de Junho, quando se comemora a proclamação da independência nesta cidade. Por sua vez, a Festa do Caboclo de Itaparica acontece no dia 7 de Janeiro. Todas as outras Festas de Independência acontecem na Bahia no dia 2 de Julho”, lembra Milton.  Cabocla de Santo Amaro Em Itaparica, o caboclo Eduardo Tupinambá é reverenciado bem antes do casal soteropolitano, mais precisamente no dia 7 de janeiro. Além de ser a data do aniversário da cidade, foi neste dia, mais precisamente em 1823, que a heroína negra Maria Felipa queimou barcos e expulsou os portugueses da ilha após uma surra de cansanção. Nada mais justo, né? Inclusive este ano o festejo se tornou o primeiro grande encontro de caboclos na Bahia. Somente o casal soteropolitano não compareceu. Todos os caboclos e caboclas se encontram em Itaparica, um evento que pretende se repetir ano que vem. 

 Ê saudade Já em Cachoeira, a data escolhida simboliza o início da luta pela independência, no dia 25 de junho de 1822, quase um ano antes do desfecho da guerra. Contudo, o caboclo cachoeirense comemora duas vezes os festejos. No lado oposto do Rio Paraguaçu, São Félix tem a cabocla Catarina Paraguaçu, esposa da entidade cachoeirense, pelo menos em tese. Ambos viviam juntos, até a emancipação são-felista, em 1890. A figura feminina acabou atravessando a ponte. Durante todo ano eles ficam separados, cada um em seu município. No dia 25 de junho, o casal se junta em terras cachoeirenses. Depois, no dia 27, eles mudam a lua-de-mel para o outro lado e ficam até hoje, quando se separam novamente. O casal não se via há dois anos, em consequência da pandemia. A saudade foi tanta, que vizinhos do barracão que eles ficam em exposição, na Praça 2 de Julho, estão escutando barulhos estranhos à noite. “Rapaz, a turma está dizendo aqui que a saudade foi tanta que o namoro entre os dois está intenso. É uma barulheira estranha.  Dois anos sem namoro, né? Inclusive estão falando que vai nascer um caboclinho para desfilar em 2023. A turma aqui de São Félix já aguarda ansiosamente este nascimento”, disse o segurança Neto, encarregado de tomar conta das duas imagens. Além do possível nascimento, cachoeiranos e são-felistas comemoram o fim de uma maldição que estava preocupando as duas cidades.  Caboclo de Cachoeira Uma lenda secular da região diz que os dois municípios seriam penalizados e encobertos pelas águas do Rio Paraguaçu no dia em que o casal não se encontrasse nos festejos da independência. “Olha o pânico desta maldição. Estamos há dois anos sem este encontro, por conta da covid. Em 2020, a Pedra do Cavalo precisou abrir as comportas, pois tivemos muita chuva. Em 2021, foi ainda pior com aquelas chuvas no final do ano, onde o rio aqui ficou cheio e alagou tudo. Foi um pânico geral, gente mandando juntar os caboclos logo, um desespero!”, lembra Elias Oliveira, diretor de turismo de São Félix.  

Elias assegura que a cabocla gera uma ciumeira em toda a cidade. É como se fosse o principal símbolo na cidade. “Quando a população soube que a cabocla iria para o encontro de caboclos em Itaparica, de barco pelo rio, foi um problema. Muita gente era contra, com medo de acontecer alguma coisa com ela. Quase não vai. Isto sem contar os constantes casos de pessoas que se dizem namorados ou amantes dela”, lembra. 

Um caso ficou bem conhecido na região. Um vigilante que tomava conta da cabocla foi flagrado aos beijos com a imagem no meio da madrugada, se dizendo possuído pela beleza da imagem. “Aqui ninguém quer pegar na carroça do caboclo de Cachoeira. Só querem ficar ao lado da cabocla. É um problema isso no desfile do 2 de julho. A paixão por ela é avassaladora na cidade, precisamos controlar os mais exaltados”, completa Elias. 

Religião  A representatividade dos caboclos transcende o mero ato cívico, principalmente no aspecto religioso de matrizes africanas. Em Cachoeira, o caboclo tem como guardião algumas casas de candomblé da região, que possuem a figura indígena como a primeira entidade do país, inclusive bem antes da chegada dos orixás. São duas coisas distintas. A figura do caboclo foi introduzida no panteão da independência no primeiro ano da comemoração, em Salvador, quando um índio de carne e osso desfilou em cima da carroça tradicional, no ano seguinte da independência. “Os Caboclos são interpretados pelo povo de santo, como entidades míticas dos encantados, no panteão dos terreiros de candomblés que cultuam esses seres sagrados.  A figura do caboclo é a mistura de tudo, incluindo os povos originários. É um ser encantado, assim como o orixá. Ele é a figura principal com diversas representatividade. Antigamente eram colocados elementos sagrados nas carroças, inclusive”, lembra o historiador Manoel Passos, mestre em História e Patrimônio pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal.  Cabocla de Saubara Doutora em História Social da Cultura e professora da Ufba, Wlamyra Albuquerque também chama atenção não apenas pelo número de caboclos, mas pelos diversos olhares e interpretações que cada um carrega. A baiana foi uma das primeiras a falar de caboclos no plural, no seu livro Algazarra nas Ruas. 

“A gente tem que falar no plural não só porque são muitas figuras de caboclos em várias cidades do interior, mas também porque são caboclos com significados diferentes, principalmente de caráter religioso. O caboclo do desfile tem uma conexão com o caboclo religioso. Ele é polissêmico. Estes caboclos inspiraram uma ideia de formação do Brasil, né? Eles encarnam também uma concepção de liberdade, um desejo de liberdade dos grupos populares”, disse Wlamyra. 

 Caçula   Os caboclos também trazem diversidade. Em Itacaré, por exemplo, este ano será a estreia de uma nova cabocla, a caçulinha da independência, que desfilará ao lado de outra cabocla. A prefeitura de Itacaré não fala em união homoafetiva, mas alguns cidadãos da cidade já estão tratando as duas como um casal.  Contudo, é na história dos caboclos de Santo Amaro e Saubara que ganha ares de polêmica, tretas e até mudança de sexo. Moradores santamarenses garantem que na cidade existia um casal. Contudo, quando Saubara ainda pertencia à cidade de Dona Canô, o caboclo foi para as terras saubarenses e não voltou mais. Muitos acreditam que o caboclo virou a atual cabocla saubarense, chamada de Dona Brígida. 

“Rapaz, quer comprar briga com Saubara? Nunca existiu isso, eles querem uma guerra, né? Nossa cabocla sempre foi cabocla, em homenagem às mulheres das ‘caretas do mingau’, que foram moradoras de Saubara que se disfarçavam de vendedoras para enganar os portugueses e conseguir entrar nas trincheiras para alimentar nossos combatentes. Esse tal caboclo já ouvi dizer que esteve por aqui, mas sumiu, ninguém sabe onde está. Nossa cabocla é a mais linda de todas, Santo Amaro tem inveja. Nós que lutamos pela independência, foi o povo saubarense. Eles também têm inveja disso”, disse a Joanita Carvalho, secretária de cultura de Saubara. Pegou ar… Caboclo Tupinambá, de Itaparica (foto Milton Moura) Mentira ou verdade, a figura de caboclos e caboclas são tão fortes quanto a independência pelo interior do estado. Se não forem mais. Em Caetité, por exemplo, todo ano uma pessoa da cidade encarna o personagem. Curiosamente, a primeira comemoração da independência foi assim, já em 1824. Somente no ano seguinte, Salvador iniciou o processo do cortejo com as imagens sagradas. A capital pode até ter sido a primeira, mas não será a única. Viva todos os caboclxs do 2 de julho!

Os caboclos e caboclas da Bahia:

No Recôncavo: Aratuípe (caboclo) Bom Jesus dos Passos (Caboclo) Bom Jesus dos Pobres (Caboclo) Cachoeira (Caboclo) Itaparica (Caboclo Tupinambá) Jaguaripe (Cabocla Dona América) Maragogipe (Cabocla) Salinas da Margarida (Caboclo Pirambu) Santo Amaro da Purificação (Cabocla) São Félix (Cabocla) Saubara (Cabocla Dona Brígida) 

Fora do Recôncavo: Salvador (Caboclo e Cabocla) Caetité (caboclo vivo, representado por alguém da cidade) Itacaré (Duas Caboclas)  Valença (Caboclo e Cabocla)