Caetano sobreviveu ao isolamento, à combucha e à paçoquinha

Enquanto muitos/as lamentavam um possível prenúncio de senilidade, ele ouvia Shoenberg, Webern, Cage e canções, porque não é otário

Publicado em 25 de setembro de 2021 às 07:07

- Atualizado há 10 meses

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Cê não sabe o alívio que eu senti ao receber o clipe de Anjos Tronchos no meu Whatsapp. Ainda que eu saiba que gênios serão sempre gênios - e é o caso -, confesso que tive medo de que nossa infinita ladeira a baixo incluísse a perda da sagacidade de Caetano, o que, pra mim, seria um pouco demais. A aridez é muita, o ambiente é sinistro, empobrecemos em tantos sentidos, perdemos o Porto da Barra. Eu não tô pronta para essa despedida. Nem ele, felizmente, para a sorte de todos/as nós.

O que eu sei é que, enquanto muitos/as lamentavam um possível prenúncio de senilidade (tá, me incluo nesse grupo, um pouco envergonhada), ele ouvia Shoenberg, Webern, Cage e canções, porque não é otário. A gente não sabia era de nada e eu fui atrás dos três pra ouvir também. Que eu sou meio otária, até muito, quando bem comparada. Mas, pelo menos, tenho consciência e adoro quando sou colocada em meu lugar, coisa que Caetano faz, lindamente, de tempos em tempos, quando começo a me achar muito espertinha. Ou chatinha. Ou amarga.

(Não "adorei" nada que foi lançado, para o grande público, na música popular brasileira, durante essa pandemia. Nem de mulher, nem de homem, nem de preto, nem de branco, nem de militância, nem de amor, nem de Marisa Monte que eu achei um saco.)

(Nem de 2 de Junho, apesar de Bethânia e sua live fenomenal.)

(Ninguém falou do zeitgeist, ninguém cantou ou escreveu sobre o espírito deste tempo, antes.)

(Dane-se, meu sobrenome é Azevedo, vou "filosofar" em alemão e fazer essa brincadeira abestalhada.)

(Pra mim, tudo foi mais do mesmo, às vezes com alguma graça)

(Mas, claro, é pessoal e você pode ter gostado à vontade.)

Antes, entristeci nas lives dele e não tô fazendo uma crítica racional. Também já entristeci com algumas parcerias pré-pandêmicas & comerciais, aparentemente generosas, que crendeuspai. Vaca Profana nunca mais foi a mesma depois de Maria Gadú. Caetano se referindo a ele mesmo, assistindo ao ele mesmo do passado, oferecendo seu acervo para que outros tentem brilhar, me deixa desamparada e eu sei que o problema é só meu, mas, sem esse problema, eu não teria o gozo de ouvi-lo sendo. Então, tá lindo e valendo demais.

Caetano sendo, em apenas um single, reconfigura o ranking do que achamos aceitável, bom ou genial, na música brasileira, de Abraçaço pra cá, quando ele já havia feito esse ajuste, anos atrás. Outra vez, ele eleva o padrão e quem quiser que lute. Falhando, quase sempre, claro. Anjos Tronchos explicita, por comparação, a nossa mediocridade e devia fazer calar. "É assim que se faz", ele diz, apenas juntando duas ou três (das próprias infinitas) referências com aquele pensamento louco e simples, acessível, veloz, genial. O resto é card de autoajuda, quase. Ou panfletinho. Ou tentativa que não chega lá.

As pessoas mais incríveis, inteligentes e informadas ainda não conseguem dizer deste momento do qual, talvez, só seja possível necropsia. No entanto, Caetano nos dá - lido, poetizado, ricamente metaforizado - com o mistério de quem entrega apenas um copo de água, mas dentro dele esconde easter eggs e nos desafia a achar. Em cada estrofe, um enredo e ele - Caetano - já circula, também, como experiência viva do que trata. Estão loucos os/as críticos/as e fãs, interpretando. Qual foi a ultima vez em que esse verbo, nesse ambiente, foi conjugado? No reino da literalidade, só isso já seria renascimento e é parte importante do novo que ele traz.

Aos quase oitenta anos, Caetano sobreviveu ao isolamento, à combucha e à paçoquinha. Agora, devolve a questão para todos/as os/as que se ocuparam dos seus pijamas, dos cabelos por cortar, da barba por fazer, da lentidão exposta nas redes sociais. E aí? Sobrevivemos, nós? Vivo, muito vivo, vivíssimo, larga a bomba que escuto em looping, aliviada. Eu não preciso me contentar com pouco. Eu não tô morta por ter achado, desse tempo, quase tudo chato. Talvez seja, exatamente, o contrário. Ainda há quem nos (coloque e nos) tire do lugar. Ainda falta o resto do disco. Teremos um Verão. Agora, eu acho.

(Caetano é foda e sempre será.)