Calculando riscos e o desastre da Challenger

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  • Marcio L. F. Nascimento

Publicado em 6 de fevereiro de 2021 às 20:41

- Atualizado há um ano

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Um dos maiores desastres aéreos foi testemunhado ao vivo para todo o mundo em 28 de janeiro de 1986. Após 73 segundos do lançamento, o ônibus espacial Challenger, com sete tripulantes, explodiu, sem sobreviventes. A missão 51 ficou conhecida como a primeira tentativa de levar ao espaço civis. A escolhida foi a professora de história Sharon Christa McAuliffe (1948 - 1986), entre 11.416 professores candidatos que mostraram interesse em se tornar astronautas. O projeto de Christa consistia em apresentar duas aulas de 15 minutos para 2,5 milhões de alunos em órbita, fazendo parte do projeto “Professor no Espaço”. A tripulação seria também a primeira considerada multirracial, pois iria levar um afro-americano e um asiático ao espaço.

O nome do ônibus espacial, que pode ser traduzido por desbravador, foi escolhido em homenagem ao navio de pesquisa britânico HMS Challenger que navegou os oceanos Atlântico e Pacífico entre 1858 e 1878. Esta corveta continha um motor a vapor e, entre 1872 e 1876, foi adquirida pela prestigiosa Royal Society, que implantou um laboratório de pesquisas equipado para efetuar uma das primeiras expedições cientificas oceanográficas, com até 243 tripulantes, denominada Expedição Challenger.

A principal falha do acidente do ônibus espacial Challenger decorreu do vazamento de combustível através de um dos anéis de vedação (anilhas ou O-rings) de um dos foguetes auxiliares (boosters). Estava muito frio no início do dia (-2 oC) e as anilhas poliméricas encolheram, deformando-se. Os detalhes foram descritos no Relatório Rogers, como ficou conhecida a comissão supervisionada pelo advogado e político americano William Pierce Rogers (1913 - 2001), escolhida pelo ator, político e presidente americano Ronald Wilson Reagan (1911 - 2004) para tratar da tragédia.

O físico americano e Prêmio Nobel Richard Philips Feynman (1918 - 1988), que participou da Comissão Rogers, exemplificou diante das câmeras de TV como o anel de vedação contraia ao mergulhá-lo em água com gelo, e não voltava rapidamente ao seu tamanho original em temperatura ambiente. Ele inclusive escreveu a respeito em seu livro “Nem Sempre a Brincar, Sr. Feynman!” (Gradiva, 1994). Um dos dados mais relevantes apresentados por Feynman consistia em testes onde falhas do projeto foram observadas em função da temperatura ambiente. O curioso é que boa parte destas falhas foram notadas em temperaturas muito frias, abaixo de 18oC. A partir destas ocorrências de falha (determinadas simplesmente por sim e não) foi possível calcular a chance, ou ainda a probabilidade, de risco de acidente, por meio do que tecnicamente chama-se regressão logística binária.

Grosso modo, em termos matemáticos, chance nada mais é do que a razão entre o número de resultados favoráveis e não favoráveis. Já a probabilidade consiste na razão entre número de resultados favoráveis e resultados possíveis. Desta forma, chance e probabilidade estão relacionadas, embora não sejam exatamente a mesma coisa. Para que se tenha uma ideia dos cálculos, muito acurados, a 14oC podia-se esperar uma probabilidade de falha de 94%, que reduzia para 54% a 18oC e 14% a 21oC. A deformação das anilhas permanecia por mais tempo à medida que a temperatura era menor.

Há um belo filme da BBC intitulado “O Desastre da Challenger” (“The Challenger Disaster”, 2013) com o ator americano William Hurt, laureado com o Oscar de melhor ator em 1985. Há também um documentário extremamente cuidadoso e sensível na Netflix denominado “Challenger: Vôo Final” (2020) envolvendo boa parte dos parentes, cientistas, administradores e políticos. Tanto a NASA - Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço, quanto as empresas fornecedoras e parceiras da empreitada, sabiam que o risco, calculado, era grande, mas ainda assim preferiram dar continuidade ao lançamento do ônibus espacial, que havia sido adiado basicamente por questões políticas.

Vale lembrar que o lançamento havia sido programado inicialmente para o dia 26 de janeiro, um domingo, mas que foi postergado devido a final de um jogo de futebol americano naquele dia. Oficialmente, o lançamento foi cancelado devido a uma previsão de tempo ruim, com chuvas, para o horário do lançamento – algo que de fato não ocorreu, apesar do tempo nublado. Foi um dia perfeito para o lançamento, perdido. Na segunda-feira a alavanca da escotilha apresentou problemas que não permitiam a trava, após a tripulação estar dentro do ônibus espacial. Para piorar, começou a ventar muito após a situação ser resolvida. Estas ocorrências foram decisivas para postergar o lançamento para o frio e fatídico dia seguinte, que pelo menos havia cessado de ventar. Reuniões de teleconferência entre especialistas na noite deste dia tratavam do risco de o lançamento ocorrer devido as baixas temperaturas previstas para a madrugada de terça devido a uma frente fria que de fato ocorreu, chegando a atrasar o lançamento por pelo menos duas horas.

Em suma, a decisão correta, embasada cientificamente, deveria ser postergar a decolagem. Algumas das diversas explicações dadas foi que havia a expectativa de muitas famílias que haviam se deslocado para presenciar o evento, hospedando-se em hotéis, além de milhares de crianças, a maioria estudantes, ansiosas pelo lançamento e pelo início das atividades cientificas que a professora Christa iria realizar no espaço.

A tripulante reserva de Christa, a professora de biologia e astronauta americana Barbara Radding Morgan, foi ao espaço em 8 de agosto de 2007 como tripulante do ônibus espacial Endeavour na missão 118, rumo à Estação Espacial Internacional. Durante 13 dias esteve em órbita trabalhando com o braço robótico do ônibus espacial e fez palestras de ensino para jovens, homenageando assim a tripulação da Challenger e em particular sua colega professora.

De modo bastante resumido, o desastre de 1986 serviu como exemplo de cálculo de riscos em diversas áreas das ciências e da engenharia. Mostrou infelizmente, que cálculos, sobretudo políticos, não deveriam prevalecer frente a evidências cientificas. Um aprendizado doloroso, mas que hoje salva vidas, pois é possível estimar prejuízos ao calcular riscos e assim evitar novas tragédias.

Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA