Caminhar pra quê? Pra não enlouquecer, oh, minha honey baby

Sem o ato de caminhar o ato de escrever não germinaria em mim feito germinou – e germinará até que tudo pare ao redor

  • D
  • Da Redação

Publicado em 19 de maio de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Manhã paulistana de maio. Talvez garoasse lá fora. Faz 30 anos. Trabalhava no jornal das 4 às 11 da noite. Horário ingrato. O que fazer nesse tempo ocioso? Massacrar o tédio – o tédio é a antessala do inferno – somente lendo ou assistindo a filmes geniais nos momentos de folga não era o bastante. Precisava – intuí – mexer a cabeça – desde sempre em vulcânica ebulição – e também o corpo, que por tabela – eu também intuí – mexeria, ‘burilaria’ a minha mente e o meu corpo – e, enfim, ninguém (e nada) me asfixiaria, me aprisionaria, me amofinaria – [mera quimera, mas quando se é jovem nada é mera quimera].

Coloquei roupa qualquer, abri a porta, peguei o elevador – e então estaco na frente do Edifício Virginia, onde então morava, olhei ao redor, e subi a Avenida Angélica como se tivesse asas nos pés - e, de fato, tenho. Cinco quarteirões acima, eis-me na Praça Buenos Aires, a joia da coroa do bairro de Higienópolis. Era – e é – belo parque ajardinado de + ou – 1 quilômetro quadrado.  Dei 10 voltas em torno no primeiro dia – 12 no segundo – e nunca mais parei mais de caminhar].

Manhã sertanejana de maio. Não chove. Hoje, há poucas horas – [começo a esboçar este texto no final da tarde]: depois de duas xícaras de café puro e (bem) quente) + dois pães com queijo, desço os 20 degraus que me separam da rua, entrei em beco saí em beco e me esparramei na locação das minhas caminhadas diárias de 3 anos para cá, a tosca avenida C.B. – na verdade pra lá de tosca, mas cercada de montanhas mágicas ao redor – um deslumbre que Glauber Rocha não captou– ai, que pena.

Corpo ereto e cabeça no lugar – mentira, na verdade nunca consigo colocar a cabeça no lugar, ela sempre vagueia – e nessas caminhadas de ora 12 quilômetros ninguém estranha mais quando encontra homem sem cabeça a lhe dar bom-dia, ou a acenar para algum carro que passa na estrada e cujo motorista buzina-lhe saudação afetuosa.

Depois de 30 anos caminhando mundo afora – em Mucugê ou em Paris – caminho feito respiro – eu flano – eu me abduzo – eu me desmaterializo – num jogo de ser e não ser que me dá fôlego para viver até este momento no qual esboço este texto que deve fluir como fluem minhas caminhadas. [Sem o ato de caminhar o ato de escrever não germinaria em mim feito germinou – e germinará até que tudo pare ao redor – e eu pare de andar e de escrever e de existir].

Já andei, em dias de desvario pessoal colossal, da Rua Gamboa de Cima à praia de Stella Maris, nesta Salvadores – 46  quilômetros de ida e volta – e, quando cheguei em casa, exaurido, percebi sobre meu boné, diabinho resiliente apontando-me o dedo médio em riste. Disparei-lhe piparote ‘pegador’ – o merdinha se estatelou na Avenida Contorno, foi pasteurizado por moto matadora e devorado por ratazanas famélicas.

[Tomei banho, matei a fome de cão, e o drama que me atormentava jazeu ao som do jazz de São Chet Baker]. [Caminhar me salva da loucura e de outros azedumes existenciais, mas – maktub! – haverá momento no qual pararei de caminhar – e talvez, não tenho certeza, os diabinhos deixem de existir].[Quem morrer verá].