Capela do século XVI, em Escada, virou rota de fuga de bandidos

Na verdade, a prática é tão comum que até a polícia conhece a estratégia

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  • Victor Lahiri

Publicado em 5 de abril de 2015 às 08:39

- Atualizado há um ano

Basta a polícia chegar à Avenida Suburbana, na altura do bairro de Escada, à procura de suspeitos de algum crime, que o entorno de uma capela  tombada como patrimônio histórico, construída no século XVI, começa a ficar movimentado. Quem deve, acaba vendo no muro baixo que dá acesso à Capela de Nossa Senhora de Escada o acesso a uma rota vantajosa: entrando pelo portão lateral, é fácil contornar o templo, chegar ao outro portão e, por um penhasco, escorregar até o bairro de Plataforma, longe do alcance dos policiais.“Eles querem imitar os holandeses”, diz o microempresário Renildo de Queiroz, 58 anos, colaborador da paróquia, numa alusão ao fato de o local ter sido, em 16 de abril de 1638, portão de entrada para uma das invasões holandesas à cidade. “Quando o bicho pega, quando a polícia chega, eles passam pela área ao redor da igreja e saem pelo portão principal. É rota de fuga mesmo”, completa Renildo.

O vigilante Valdemiro Barbosa, 49, conhece as fugas. “Tem a escolinha da igreja e do outro lado tem um portão. Quando a polícia chega, eles fogem pelo outro e nem dá tempo de pegar, porque fica atrás da igreja”, diz. Mas,  para ele, que também frequenta o templo, a prática não é recorrente. Possivelmente porque, segundo Renildo, a maior parte das fugas seja de madrugada, depois de encerradas as atividades na capela.

Na verdade, a prática é tão comum que até a polícia conhece a estratégia. Mas, segundo o major Kley Menezes, que comanda a 14ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/Lobato), é complicado alcançar os fugitivos. “A gente sabe (que a igreja é rota de fuga). Todos os dias a viatura passa lá. Mas, como o muro está quebrado, o acesso deles fica muito fácil. Quando eles veem a viatura, passam correndo para a igreja. De moto, em qualquer lugar eles entram, mas a viatura, não”.

Camisinhas O muro baixo que tenta separar a capela da rua e o portão quebrado não facilitam a entrada só de quem foge da polícia. Encontrar palitos de fósforo queimados, camisinhas usadas, bitucas de cigarros, lençóis e até uma barraca no gramado da área externa da igreja já não espanta mais quem frequenta o espaço religioso. Renildo de Queiroz conta que a equipe de limpeza da capela já achou até drogas escondidas. “Pela manhã, quando abrimos a igreja, cansamos de encontrar lençóis, camisinhas. Já encontramos até uma barraca do pessoal que invade durante a noite”, relatou Geovaní Souza Silva, a Preta, professora na escola comunitária da paróquia. “Sem contar as vezes em que o pessoal veio à missa e se queixou dos meninos usando maconha em frente às portas da igreja”, lembrou.Capela do século XVI tem vista para o mar da Baía de Todos os Santos(Foto: Angeluci Figueiredo)Burocracia Para a comunidade e a própria polícia, o problema da falta de segurança poderia ser reduzido com o aumento do muro e com a troca do portão de madeira. “O muro está quebrado. Eles estão com recurso para fazer, mas não podem. Se a entrada fosse impedida, ficaria mais fácil até o trabalho da gente”, diz o major Kley. Mas a capela é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1962 e qualquer intervenção precisa de autorização do órgão.

“O Iphan tem um catálogo que diz exatamente o que precisa fazer, os documentos. Mas a coisa é muito complicada. Está uma polêmica em torno do muro, porque a planta atual não está batendo com a antiga”, destacou Renildo. A filha dele, arquiteta, chegou a projetar o muro com o gradil, mas o trabalho precisa do aval do instituto.De acordo com a Superintendência Estadual do Iphan, é preciso que o interessado encaminhe um projeto definitivo ou estudo preliminar sobre a edificação, além dos seguintes documentos e informações: planta de situação e localização, com escala e endereço completo; plantas baixas, cortes e fachadas, com especificação de revestimentos externos, desenhos das esquadrias e da cobertura; desenho das fachadas voltadas para a via pública, do imóvel tombado e das edificações vizinhas; fotos abrangendo o terreno e entorno imediato; projeto elaborado de acordo com códigos municipais vigentes e atendendo às exigências específicas para o local; definição do uso e, finalmente, identificação e endereço do responsável técnico.

Segundo Preta, as exigências do órgão aumentariam expressivamente o orçamento feito de forma independente, estimado em R$ 12 mil. As intervenções emergenciais incluem a reparação de rachaduras no piso e paredes da igreja e da casa paroquial, além da substituição das tábuas de madeira que compõem o muro externo e os portões de acesso.

Arrecadação Empenho para resolver o problema não falta. “Nós fizemos diversas ações no ano passado, com apoio da comunidade, para conseguir o dinheiro ao menos do muro e dos portões. Foi desde venda de almoço a festas para conseguir arrecadar o valor, mas até o momento conseguimos R$ 5 mil”, contou Preta. “Só que, quando já estava tudo pronto para começar uma parte da obra, descobrimos que outras paróquias já estão com processos dentro do Iphan, e que existe uma série de exigências para esse tipo de intervenção”, relatou.

O pároco de Nossa Senhora de Escada, padre Anastácio Gilberto, contou que está em contato com a Arquidiocese de Salvador. “A gente passou para o administrador da Arquidiocese e já foi feita a solicitação para restauração de algumas pinturas e aproveitou para pedir autorização para construir um muro. Para o muro, a gente tem o recurso próprio. E quanto à restauração, fica pela parte deles”, disse. A arquidiocese informou está tomando as medidas cabíveis para que a igreja seja restaurada com a devida brevidade.Segundo a Superintendência Estadual do Iphan, a última obra realizada pelo órgão aconteceu em 2007, há oito anos. À  época, a igreja encontrava-se com risco de desmoronamento. O Iphan executou, em caráter emergencial, serviços na contenção da encosta e de conservação, com investimento de R$ 639 mil.A última vistoria, no entanto, foi em 2012, quando técnicos constataram que a capela estava em bom estado de conservação. Estão previstas novas vistorias para 2015, mas não existe, de acordo com a superintendência, solicitação para novas obras de conservação ou restauração da igreja.

Capela do século XVI serviu de refúgio para o Padre AnchietaDe acordo com registro do Sistema de Informações do Patrimônio Cultural da Bahia (Sipac), a Capela de Nossa Senhora de Escada foi construída no século XVI por Lázaro Arévalo e doada aos jesuítas em 1572. O templo, que no próximo dia 11 completa 53 anos de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), já serviu como refúgio para o padre José de Anchieta, em 1556. Localizada no alto de um mirante, com vista privilegiada para o mar da Baía de Todos os Santos, a capela possui uma placa de pedra que indica que o local foi palco de uma invasão holandesa.

“Ali foi o local do desembarque da invasão chefiada por Maurício de Nassau, em abril e maio de 1638. A placa foi colocada pelo Instituto Histórico na década de 1930”, diz o professor Pablo Iglesias Magalhães, da Faculdade de História  da Ufba. Segundo o arquiteto e urbanista Chico Senna, a igreja representa um raro exemplar  arquitetônico do século XVI, uma das últimas em Salvador junto com a Igreja de Monte Serrat. “Monte Serrat já até passou por algumas modificações e esse fato faz de Escada a estrutura mais original e íntegra que temos. É uma verdadeira raridade, uma preciosidade. Eu lamento muito ver o estado em que a estrutura se encontra”, comentou Senna.

Após arrombamentos, paróquia reduziu atividades em escolinhaA igreja funciona durante a semana, principalmente entre o final da tarde e início da noite, quando são celebradas as missas e os encontros da Legião de Maria. Mas as atividades de extensão têm sido reduzidas devido à falta de segurança na área da igreja. “Conforme vai anoitecendo, temos que fazer as atividades de portas fechadas”, comenta a ministra da eucaristia Catarina Sena, 52. Além disso, a igreja já sofreu roubos e arrombamentos. “Eu me recordo de ao menos quatro arrombamentos por aqui, nos últimos seis anos. É assustador. O principal alvo na maior parte das vezes era a escola comunitária. Até hoje não conseguimos nos recompor de alguns desses prejuízos”, diz Geovaní Souza Silva, a Preta, professora da escola. A Escola Comunitária Nossa Senhora de Escada é mantida há mais de 30 anos pela paróquia e beneficia cerca de 45 famílias do bairro.

“Uma vez, conseguimos comprar um som, aparelho de DVD e televisão para ajudar nas atividades. Quando chegamos de manhã, tinham levado tudo”, conta Preta. Até o ano passado, aconteciam aulas de inglês na escolinha comunitária. Contudo, a oferta foi suspensa, dentre outros motivos, pela falta de segurança. O major Kley Menezes, que comanda a 14ª CIPM (Lobato), explicou que o estado de conservação da área é um empecilho para a segurança da igreja e afirmou que o policiamento tem se intensificado na área por conta do diálogo com a comunidade. Também há queixas de que a Guarda Municipal não atua na região. O tenente-coronel Peterson Portinho, que comanda a Guarda, confirmou que a área não conta com equipes e não consta no planejamento estratégico a implantação de guarnições.