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Capela, prataria, terrenos e esmolas: o que baianos deixavam para igrejas

Costume de pedir missas eternamente em troca de doações é antigo, mas promessa ainda é cumprida

Publicado em 6 de novembro de 2021 às 05:00

 - Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO

Catharina Paraguaçu, esposa do português Diogo Álvares, o Caramuru, é considerada a maior benfeitora do Mosteiro de São Bento da Bahia, em Salvador. Naquele testamento, cujo original está preservado no Livro Velho do Tombo do mosteiro, ia uma infinidade de bens, começando pela pequena ermida de Nossa Senhora da Graça, construída por conta da devoção de Catharina em 1535.

Lá dentro, já na época do testamento, em 1586, havia ornamentos em prata, também deixados para o mosteiro, assim como toda a prataria da capela. O testamento ainda dedicava à Ordem de São Bento as peças em prata usadas na casa da família – um jarro, uma bacia, um saleiro e cinco colheres –, além de todas as terras ao redor da capela, hoje Igreja e Abadia de Nossa Senhora da Graça, no bairro de mesmo nome, onde Catharina está sepultada. Em testamento original, Catharina Paraguaçu detalha dação de bens: ermida da Graça, terrenos ao redor da construção, prataria e ornamentos de lá e da casa (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Como o mosteiro é detentor das terras, transações imobiliárias no bairro resultam em pagamentos de um percentual à ordem - foro e laudêmio.“Nós fizemos a transcrição dos documentos do Livro Velho do Tombo e tem até uma ilustração de Catharina Paraguaçu fazendo a doação ao mosteiro”, mostra Dom Anselmo, ao recuperar uma das obras produzidas pela própria Ordem, dona de um acervo de obras raras que só não é maior do que o da Biblioteca Nacional – 13 mil títulos.Na gravura, além da índia, aparece uma representação do padre jesuíta Luís da Grã e do abade do Mosteiro de São Bento à época, frei Antonio (de Latrão) Ventura.

Outro benfeitor considerado um dos principais doadores de lá é o latifundiário Gabriel Soares. O testamento dele é de 1584 e, entre as doações, há 473 terrenos. Ele fez um pedido curioso:“Ele só pediu que em sua lápide constasse a frase ‘Aqui jaz um pecador’. É o único benfeitor que está sepultado aqui dentro do claustro, os outros estão na Igreja”, mostra Dom Anselmo. Lápide de Gabriel Soares é a única de benfeitores dentro do claustro do Mosteiro de São Bento da Bahia (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Na lápide de Gabriel Soares, de fato, consta apenas esta frase, sem nome, data de nascimento ou morte dele. A reportagem fotografou o local após receber uma autorização pouco comum: a da entrada de mulheres no claustro masculino do mosteiro. Graças a esta autorização, também foi possível registrar o único retrato de um leigo dentro do claustro: o de Francisco Barcellon.

“Ele era irmão de um dos abades aqui do mosteiro, frei João de Santa Maria Barcellon”, aponta Dom Anselmo. Barcellon financiou a construção de uma capela-mor do mosteiro. Ele morreu em 1750, aos 77 anos, e seu retrato foi colocado no corredor de celas. “O ato de guardar o livro na gaveta simboliza uma doação feita”, explica, mostrando o gesto de Barcellon na tela. Parte dos benfeitores tem ossos sepultados sob uma lápide dentro da igreja do mosteiro, próximo do altar (Foto: Clarissa Pacheco/CORREIO) Missas na cidade toda O oitavo arcebispo de Salvador, Dom José Botelho de Mattos, fez um pedido mais diversificado a ser cumprido após sua morte, em 1767: o testamento soma 2.833 missas, distribuídas por diversos pontos de Salvador, passando pela Sé, as freguesias da Penha, Vitória e Brotas e o Mosteiro de São Bento. A Penha, onde foi sepultado, ficou com a obrigação maior - pouco mais de 900. Mas nem todas as missas eram para ele.

Botelho de Mattos pediu 100 missas pelas almas do purgatório, 60 distribuídas entre 12 santos, 20 pelo papa Benedito XIV e outras 20 pelo rei Dom João V. Pediu que seu corpo fosse levado à sepultura por 12 pobres e que cada um deles recebesse quatro mil réis. A casa que havia construído na Penha ficava para o pároco – e se ele não a quisesse, que fosse vendida e o dinheiro repartido entre esmolas aos pobres, à Irmandade da Penha e mais missas: 100 celebrações pelas almas do purgatório.

Se, nesses 253 anos, o testamento já foi cumprido ou não, não há uma certeza. O fato é que, pelo menos na Penha, ainda se reza pelo antigo arcebispo. O lugar, afirma Luan Sacramento, membro da Irmandade, foi escolhido porque Botelho de Mattos costumava descansar na Península de Itapagipe. Depois de resignar – renunciar ao posto de arcebispo – ele se isolou na Penha. Dom José Botelho de Mattos, arcebispo da Bahia de 1741 a 1760, foi sepultado na Igreja da Penha e pediu missas não só lá, como em outras igrejas de Salvador (Foto: Divulgação/Irmandade de Nossa Senhora da Penha) “Ele construiu a Igreja da Penha, que é uma devoção particular que ele trouxe, e a casa, que hoje é chamada de Palácio de Verão dos Arcebispos. Então, ele foi morar nessa casa acompanhado de dois negros e um capelão, já em idade bastante avançada, em 80 anos”, diz. Segundo Luan, após a morte, Dom José Botelho de Mattos não teve todas as honrarias que normalmente se prestava a arcebispos. “No testamento, ele deixou essas missas e eu acredito que elas tenham sido cumpridas, mas as honrarias que deveriam ser feitas pela Igreja não foram feitas”, explica.

Com ou sem pompa na despedida terrena, Botelho de Mattos recebe orações em seu nome até hoje, independente do que foi pedido em testamento. E, nos últimos 50 anos, há um pedido especial: a canonização.“Ele morreu com fama de santidade e também temos relatos de graças alcançadas pela sua intercessão. Em 1967 foi comemorado o Jubileu da morte dele, que envolveu todo o estado da Bahia. E, de 2014, até o presente momento, nós estamos celebrando missas todos os meses pedindo a glorificação da alma dele e o reconhecimento também como santo”, explica Luan.Desde fevereiro deste ano, a Irmandade da Penha tem pedido missas em intenção de Botelho de Mattos em outras igrejas de Salvador e também pelo interior. Enquanto isso, preparam a documentação para pedir a abertura de um processo de canonização na Santa Sé.

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