Carta a Dom Murilo

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 19 de janeiro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Dom Murilo,

Sua excelência, investido do cargo de cardeal primaz do Brasil e de arcebispo de Salvador, é quem poderia liderar uma campanha para que o Senhor do Bonfim seja reconhecido pela igreja, a Santa Sé, como o legítimo padroeiro dos baianos. Padroeiro já é de direito, mas não de fato. Há dezenas de argumentos que sustentariam essa cruzada, mas, na minha modesta opinião, o mais consistente é a devoção do povo de Salvador, manifesta em vários momentos, o ano todo, e em especial na quinta feira da Lavagem como vimos semana passada, um mar de gente cultuando o orago de sua preferência.

Ao contrário, o atual padroeiro da cidade, Francisco de Jasso Azpilicueta Atondo y Aznáres, conhecido como São Francisco Xavier, não conta com devotos nesta cidade da Bahia; a tradicional procissão de 10 de maio não atrai mais do que 300 pessoas e podemos estimar que mais de 99,9 % dos baianos ignoram esse nosso padroeiro oficial, caberia uma pesquisa de opinião para aferir. É uma situação incômoda. Pergunto eu, em que outra grande cidade do mundo o seu padroeiro não tem seguidores? Se não há devotos, nada justifica a existência de um padroeiro apenas no papel.

Penso que o papa Francisco, mesmo sendo jesuíta como São Francisco Xavier, seria sensível a uma proposta no sentido de entronizar o Nosso Senhor do Bonfim no trono simbólico que já lhe pertence, imagino que não seja um trâmite simples, mas, em algum momento de nossa história, teremos de resgatar esse valor imaterial. Temos quatro fortíssimos argumentos para que o atual padroeiro seja substituído: não tem devotos; não conta com uma igreja, nem mesmo uma capela, em sua homenagem e para sua devoção; não foi cultuado ao longo dos séculos nem pela igreja baiana e nem pelos seus fiéis e o milagre que lhe foi atribuído, hoje se sabe, foi meio milagre, se isso existe.

Foi no remoto ano de 1686 quando a primeira epidemia de febre amarela assolou Salvador, fazendo muitas vítimas, que os jesuítas fizeram circular pela cidade, de mão em mão, uma relíquia do santo, falecido na China em 1552, vítima de uma epidemia em uma de suas viagens missionárias. Como a epidemia de febre amarela na Bahia recuou a Câmara de Vereadores solicitou e obteve do rei e da Igreja o reconhecimento de São Francisco Xavier como padroeiro da cidade. Hoje sabemos que a febre amarela continuou mais alguns anos como registrou Rocha Pitta, célebre autor da História da América Portuguesa. E sabemos também que todas as epidemias desta cidade tiveram um ciclo de alta mortalidade e, após, continuaram por mais alguns anos com menores índices de óbitos.

Na epidemia de Cólera Morbus de 1855,  São Francisco Xavier, cuja procissão deixara de ser realizada desde 1828, foi novamente lembrado, não apenas ele, mas também o Senhor do Bonfim cuja imagem foi conduzida pelos fiéis em agradecimento pelo fim do ciclo de alta mortalidade da doença, do alto da colina até a Igreja da Sé. Passado o pior, São Francisco Xavier voltou a ser esquecido e a procissão interrompida de novo por décadas, reestabelecida em definitivo em 1942. Ao contrário, a devoção ao Senhor do Bonfim, cresceu.

O senhor, dom Murilo, pela sua investidura, conta com as condições para liderar essa campanha em favor do reconhecimento oficial do Senhor do Bonfim como o legítimo padroeiro dos soteropolitanos; terá o respaldo da secular Irmandade da Devoção do Senhor do Bonfim; da Câmara de Vereadores; das autoridades da cidade e, em especial,  do povo de Salvador que lhe será eternamente grato.