Carta aberta à minha mãe

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  • Kátia Borges

Publicado em 21 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Quem diria, mãe, que a sua ausência seria pacificada pela constatação de que você está segura agora. Por aqui, os dias amedrontam, as noites são de amargura, e o que posso contar de alegria é pouco. Cientistas não adormecem um segundo, avançam as pesquisas. Talvez sirva de alento conferir em que pé andam os testes nas pessoas. Os mortos, pelo mundo, são tantos que nunca saberemos seus nomes. Viraram números espantosos.

Ainda assim, escrevo essa carta, aberta aos que vivem comigo a minha época. Nunca estivemos tão unidos como em nossas varandas. Nós, os que temos casas onde abrigar a esperança. Nós, os que temos água. Nós, que brigamos nas farmácias por álcool em gel, luvas e máscaras. Manuais ensinam como assear cirurgicamente as nossas mãos várias vezes ao dia. Mas não podemos lavar as mãos em relação aos que vivem em situação de rua. Não podemos cobrir os olhos com nossas máscaras.

Sabe, mãe, sinto saudades de quando escrevi um poema quase ingênuo sobre o fato de morar tão perto do vizinho, que daria até para molhar as suas plantas. Não quero escrever poemas. Como os soldados que voltavam da Primeira Guerra, em O Narrador, de Walther Benjamin, estou muda. Pensar que, há três semanas, meu coração organizava o lançamento de um livro e aguardava que o Destino ajeitasse as pedras no tabuleiro sobre um outro, que me emocionava como se fosse o primeiro.

Hoje, sequer penso em datas futuras que não sejam aquelas do trabalho remoto. O cronograma das aulas amarra o sentido do cotidiano, ao longo da semana. Estamos, há vários dias, presos em nossas casas. Ouvir as vozes familiares de meus alunos, do outro lado da tela, escutar suas dúvidas e seus risos, muito me ensinam nesse momento duro. Mas há algo mágico, mãe. Antes que tudo acontecesse, notei que reapareciam aos poucos, em todo o mundo, animais considerados extintos.

Fui colecionando as notícias sobre isso, ao longo de meses, montando um quebra-cabeças sobre o que poderia indicar esse retorno. Os animais pressentem tudo. Depois de 200 anos, guarás vermelhos reapareceram na ilha onde mora meu amigo. O que queriam nos avisar, aqueles pássaros? O que nos dizem os canais de Veneza, hoje límpidos, onde agora nadam cardumes de peixes? Revejo fotos e vídeos de uma viagem à Europa, feita há menos de um ano, as praças de Roma lotadas de turistas.

Na Estação Santa Lucia, disputavam vaga nas gôndolas e espaço para selfies na Praça de São Marcos. Nos Museus do Vaticano, gente de todo canto tornava caminhar quase impossível. Também assim, mãe, multidões avançavam nos corredores do Louvre. Ambos estão desertos hoje, fechados às visitas. Quando durmo, nessas noites de isolamento, sonho com uma vidinha bem medíocre, dessas em que se pode fazer planos de ir à praia no domingo.