Censo incluirá comunidades quilombolas pela primeira vez em 150 anos

Segundo o IBGE, a Bahia é o estado com mais remanescentes de quilombos

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  • Gil Santos

Publicado em 18 de agosto de 2022 às 05:30

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/ CORREIO

A quilombola Floriceia Carvalho, 64 anos, era menina quando ouviu pela primeira vez as histórias de negros escravizados que fugiam de Salvador para buscar abrigo nos quilombos que ficavam na Ilha de Maré, na Baía de Todos os Santos. Histórias de como eles chegavam exaustos depois de fazer a travessia a nado e dos muitos que morriam tentando. Os descendentes desses sobreviventes ainda moram nessas localidades.

Agora, pela primeira vez em 150 anos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) vai incluir essa população no censo. Nesta quarta-feira (17), uma equipe desembarcou na Praia Grande, na ilha, para conversar com as lideranças sobre a pesquisa. Os coletes azuis atraíram a atenção de homens e mulheres que tratavam peixes e faziam cestos artesanias na porta das casas da pequena vila. Floriceia participou do encontro.“Nos últimos anos tivemos algumas melhorias, a população cresceu bastante, mas ainda existem muitos problemas e sentimos a ausência de políticas públicas, em todas as esferas. Então, essa pesquisa pode ajudar nesse sentido, precisamos ser vistos. Sou quilombola e tenho muito orgulho disso”, afirmou.Segundo o IBGE, a Bahia é o estado com o maior número de comunidades quilombolas do Brasil, em casa dez municípios, seis tem algum quilombo. São 1.046 localidades, entre formalizadas e não formalmente reconhecidas. Em Salvador, a maior concentração está na Ilha de Maré, onde cinco recenseadores começaram a visitar os 640 domicílios. O pescador Antônio Santana, 54, respondeu ao questionário nesta quarta-feira e se autodeclarou quilombola antes mesmo de a pergunta ser concluída.“Essa foi a primeira vez que participei [do censo do IBGE] e me sinto muito honrado em função de uma luta que a gente faz há muito tempo. Vivemos em um país onde não somos reconhecidos, onde a nossa identidade é extremamente massacrada, mas a gente vai conseguindo e sobrevivendo na luta”, disse.São sete quilombos reconhecidos na ilha, além de Praia Grande, existem Bananeiras, Botelho, Itamoabo Neves, Maracanã, Porto das Caravelas e Santana. No interior, os municípios com mais territórios são Vitória da Conquista (28 quilombos), Campo Formoso (25), Bom Jesus da Lapa (23) e América Dourado, Bonito e Seabra (19 cada). Pescador Antônio Santana, 54 anos, responde ao questionário (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) Mudanças As lideranças frisaram que ser quilombola é antes de tudo reconhecer a identidade negra e as opressões e resistências vividas pelos antepassados, e se queixaram que a juventude está esquecendo a história. O supervisor dos recenseadores na ilha de Maré é William Neves, um jovem de 21 anos que contou que durante muitos anos não se identificava como quilombola, porque a palavra era associada apenas a sofrimento.

“Minha família não falava muito sobre isso, quando falava era sempre com um olhar negativo. Diziam que quilombola era aquele que sofreu, que penou, e ninguém queria se identificar como quilombola. Hoje, com os novos movimentos, as pessoas mudaram de opinião e estão se reconhecendo como quilombola, como identidade negra”, disse.

Além da autodeclaração, o censo demográfico investiga como vivem os moradores dessas comunidades. Durante a reunião lideranças destacaram problemas em infraestrutura, poluição ambiental e ausência de políticas públicas. A pesquisadora do Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais do censo 2022, Daiane Ciriaco, destacou que a inclusão dos quilombolas amplia a diversidade do censo e torna a pesquisa mais completa, e se emocionou durante a reunião.

“O censo vai a todas a áreas desde sempre, mas será a primeira vez que terá perguntas direcionadas para pessoas quilombolas, em 150 anos. Com isso, essa população vai deixar de ser invisível aos olhos do estado. Se você não é contado, você não existe para as políticas públicas e para as estatísticas oficiais. Além disso, é uma forma de retratar o Brasil o mais próximo possível da sua realidade”, afirmou.

Os recenseadores estarão nas ruas até outubro e os primeiros resultados da pesquisa serão divulgados a partir de dezembro. No caso da Ilha de Maré os cinco trabalhadores moram na comunidade. Os agentes estão identificados com colete, crachá com foto e o dispositivo móvel de coleta. Eles carregam no peito um QR Code que aponta para um site no qual é possível confirmar a identidade dessas pessoas. Além disso, é possível também ter essa confirmação pelo 0800 721 8181 ou pelo site respondendo.ibge.gov.br IBGE apresenta pesquisa para lideranças da Ilha de Maré (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) Visibilidade  O censo demográfico de 2022 é o 13º do país, mas o 1º a trazer informações específicas sobre pessoas que se auto identificam como quilombolas e sobre as comunidades em que elas vivem. A quilombola Maricélia Lopes, 52 anos, sempre viveu e ainda mora na Ilha de Maré, e usou uma camiseta em referência ao Quilombo Rio dos Macacos, que fica no continente, para cobrar políticas públicas para essa população e dados mais detalhados.

“Saímos da invisibilidade do IBGE, e isso é um direito, ninguém está fazendo um favor. Se tem informações e dados sobre o agronegócio, feita com dinheiro público, por que não fazer da gente também? Queremos saber quantas marisqueiras, pescadores e artesãos existem nos quilombos. Somos potência [econômica] também, afinal quem alimenta os mercados? Conseguir essa visibilidade no censo foi uma vitória”, afirmou.

As negociações com o IBGE para inclusão dessa população na pesquisa começaram em 2015. O coordenador nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (Conaq), José Ramos, também destacou a importância dessa mudança.“É um sentimento de luta e de referência aos nossos ancestrais. É através desse reconhecimento que podemos cobrar mais ações. É preciso se auto identificar para poder lutar pelos nossos direitos, e esse é o ponto fundamental dentro das nossas comunidades quilombolas, o trabalho de conscientização”, disse.Quase a totalidade das comunidades quilombolas existentes na Bahia (96,2%) não são oficialmente delimitadas. No Brasil, apenas 6,8% das localidades são legalizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os dados são do IBGE, que além da Bahia, nesta quarta-feira, fez mobilizações pelo censo quilombola também em Goiás, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.