Chamas sem postagem

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Publicado em 24 de agosto de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Recebi no celular uma mensagem que comparava duas postagens distintas nas redes sociais. Numa delas, o jovem francês Kylian Mbappé faz um alerta sobre os incêndios na Amazônia. Em paralelo, num horário mais ou menos próximo, seu companheiro de clube Neymar usa a mesma rede para fazer uma publicidade de relógio.

Fui dar uma olhada e, de fato, Neymar estava propagandeando um relógio de luxo enquanto dezenas de estrelas globais, do esporte e de outras áreas, lembravam em seus canais pessoais que o maior patrimônio natural do Brasil – e do mundo - está virando cinzas.

Desprovidos de bom senso, alguns certamente dirão que essa zoada em torno das queimadas nas nossas florestas não passa de “mimimi”. Melhor deixá-los falando sozinhos.

“Então Neymar agora tem que se posicionar sobre tudo?”, pode inquirir um passante. Ninguém é obrigado a nada, mas chama atenção que um atleta tão atuante nas redes sociais seja tão ágil para comentar, por exemplo, o trágico incêndio ocorrido há alguns meses na Catedral de Notre Dame, mas só tenha postado (um storie no Instagram) sobre a Amazônia no final da sexta-feira, depois de comentários sobre sua omissão inundarem a internet.

Justiça seja feita, não foi só Neymar. Nesta sexta, apliquei uns bons minutos numa navegação sem destino pelas redes sociais de alguns dos principais esportistas brasileiros, de diversas modalidades. Busca aleatória, puxando nomes pela memória. Nem sinal das chamas na floresta, com as devidas “escusas” a quem não fui olhar.  

Este silêncio, mesmo que virtual, é só mais um reflexo de como os atletas brasileiros, com as exceções que confirmam a regra, vivem em completo descolamento da realidade do país.

Talvez eles (e suas caras assessorias) achem a questão amazônica – e do Meio Ambiente de modo geral – um assunto menor, que não mereça atenção dos seus milhões de seguidores. Talvez o problema esteja na educação formal, aquela que faltou pra maioria lá na base, que é quando desenvolvemos nossa capacidade de nos posicionar criticamente diante dos fatos. Ou talvez eles achem que falar das queimadas agora é fazer política – e é -, mas qual ato nessa vida não é político?

Talvez os atletas brasileiros (e suas caras assessorias) não saibam que, antes da queimada virar o monstro que virou, fazendeiros, grileiros e madeireiros programaram o “Dia do Fogo”. Sim, com anúncio pago em jornal e tudo mais, lá no meio da floresta paraense, numa cidade que, veja só a ironia, se chama Novo Progresso.

Qual era a programação do Dia do Fogo? Incêndios em bloco e espalhados pela região, para dar apoio ao presidente Jair Bolsonaro e demonstrar que eles, os incendiários, “queriam trabalhar”.

Talvez os atletas brasileiros não saibam que o ministro do Meio Ambiente do Brasil fugiu sob vaias da Semana do Clima da ONU realizada esta semana em Salvador. Eu estava lá, testemunhando o constrangimento brasileiro diante de pesquisadores e especialistas da causa ambiental de toda a América Latina e do Caribe. Centenas de cientistas respeitados no mundo todo, mas o Governo brasileiro despreza a ciência.

Enquanto os atletas brasileiros (e suas caras assessorias) seguirem vivendo num mundo paralelo, não dá para esperar que chamem atenção para o problema da Amazônia. Até lá, vai ser só propaganda de relógio mesmo. Ou foto no carnaval, da namorada, de treino, de jogo, do carro...

Victor Uchôa é jornalista e escreve aos sábados