Cinzas de uma madrugada

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  • Paulo Sales

Publicado em 22 de junho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Passava das duas da manhã e eu estava só, no escuro da varanda. Tinha acabado de assistir ao novo filme de Spike Lee e – ainda impactado por aquela atmosfera espasmódica e tristemente premonitória de brutalidade e intolerância – me deparei com uma ausência quase absoluta de sentido. Como se aos poucos fosse absorvido por um buraco negro.

Tomava a derradeira taça de vinho. Do outro lado da rua, no ponto de ônibus, um homem que dormia num banco se levantou com dificuldade e acendeu um cigarro. O brilho da brasa se intensificou quando ele aspirou a fumaça. Passou um rapaz numa bicicleta, com uma dessas caixas de entrega por aplicativo nas costas. Levava algum pedido àquela hora? Alguns minutos mais tarde, dois carros pararam e o motorista de um deles saiu e foi até o outro: pegou um baseado, acendeu e voltou para seu carro. Os dois partiram, e deu para ver o brilho da brasa pelo vidro. O homem no ponto ainda fumava, agora novamente deitado no banco.

Escondido na penumbra, eu observava essas cenas sem interesse, enquanto tentava extrair algum sentido do fato de que não existe sentido algum. Mesmo após décadas pesando sobre a Terra, me vi naquele momento como um menino sem qualquer ideia do seu papel no mundo. Eu não sabia sequer o que era o mundo. Sentia algo como a náusea descrita por Sartre. Ou talvez um princípio de desespero.

Gosto da vida. Dentro do possível, tento me guiar pelo caminho do epicurismo, do prazer que o conhecimento, as boas conversas e a boa mesa trazem a reboque. É uma forma de tornar a certeza da finitude menos avassaladora. Mas naquele momento o que se amplificava era o vazio. O significado da existência me escapava por completo, como o fóssil de um peixe desconhecido enterrado no fundo do mar, a quatro mil metros de profundidade. Como apreender a vida em sua totalidade ou ao menos roçar os galhos na sua essência?

Lembrei de Shakespeare, em Macbeth: “O amanhã, outro amanhã, e mais um amanhã se arrastam com seu diminuto passo, dia após dia, até a última sílaba do registro dos tempos”. Será que ele estava certo quando descreveu a vida como uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e sem sentido algum? É só isso o que temos, afinal? Uma sombra ambulante?

Eu me sentia como Sísifo ao ver, pela milésima vez, a pedra despencar do alto da montanha. Por que haveria de ser diferente? Somos arremessados para dentro de um planeta, tateamos no escuro, tropeçamos, nos perdemos, urramos como loucos e por fim somos lançados para fora da engrenagem.

Naquele momento, só na varanda e no escuro, a vida se mostrou assim: incompreensível. Uma enorme bolha de caos, refratária a qualquer pensamento lógico. Um caos onde pessoas de pele preta morrem sufocadas, cretinos se orgulham da própria abjeção e milhares morrem todos os dias com os pulmões apodrecidos. A realidade cotidiana voltava a me invadir, mas eu permanecia estático olhando a noite. Uma lua em gancho, minguante, se erguia sobre um prédio. Desta vez, ela não me trouxe alento. Sua luz roubada ao sol era o mais perfeito emblema da indiferença do universo por nossa insignificância.