Coca-Cola, quilombola, tropicália e comunistas: uma breve história de Irará

Terra de Tom Zé e Dida, cidade do sertão baiano acaba de completar 178 anos

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  • Da Redação

Publicado em 7 de junho de 2020 às 05:10

- Atualizado há um ano

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A companheira de Tom Zé, Dona Neusa Martins, diz que todo lugar que o cantor vai acha parecido com Irará. Em uma de suas muitas viagens pelo mundo, certa feita, o tropicalista esteve em Bruxelas, capital da Bélgica. “Ela me disse: ‘até aqui você acha parecido com seu sertão’. Achei isso tão bonito”, contou ele, em entrevista a este cronista há três anos.

O acorde dissonante em Tom Zé não é apenas a saudade. Irará, de fato, conserva traços extremamente cosmopolitas, dando seu toque particular a importantes acontecimentos da história da humanidade.

Numa lista rápida dá pra citar: resistência escrava; combatentes da II Guerra Mundial; integrantes de alto relevo do Partido Comunista; tropicalista; multicampeão mundial de futebol e o refinado gosto pela música clássica, representado pela gloriosa filarmônica 25 de Dezembro – capaz até de influenciar os rumos da política local.

Com a pandemia da covid-19, assim como em todas as outras cidades do interior da Bahia, Irará teve sua rotina completamente alterada. A grande feira de sábado tem funcionado de forma reduzida, três vezes por semana, apenas com comerciantes locais. O Jeguerê, bloco de São João que desfila há mais de duas décadas, foi cancelado. E os festejos do dia 27 de maio – celebração de um dos dois aniversários da cidade – foram silenciosos, sem a alegria costumeira.

O município tem apenas quatro casos confirmados da doença. Os baixos números não são aplaudidos. Com poucos testes feitos, recaem fortes suspeitas de subnotificação. Irará fica no sertão baiano, a 135 quilômetros de Salvador. Foto antiga da cidade de Irará, que no dia 27 de maio completou 178 anos de fundação (Foto: Portal Iraraense) A primeira concepção do que viria a ser a cidade começa a partir da sesmaria de Água Fria, em 1615, cuja criação de gado, sustentada pela mão de obra escrava, era a principal atividade econômica.

Em maio de 1842, o presidente da Província da Bahia, o visconde de Monserrate, eleva a sesmaria à condição de Vila da Purificação. Em 8 de agosto de 1895, o povoado se torna efetivamente uma cidade, com o nome oficial de Irará – termo usado pelos índios quiriris para se referir ao animal papa-mel, fecundo por aquelas matas.

Durante o período colonial, muitos negros escravizados se rebelaram e fugiram da dominação, formando o quilombo da Olaria. Eles resistiram, criaram laços de solidariedade e passaram a estabelecer trocas comerciais com a própria cidade.“A produção de cerâmica demarca a trajetória dos grupos. Lá, os sujeitos encontraram a produção de objetos, principalmente telhas e tijolos, para resistirem ao processo de dominação dos senhores brancos: os homens faziam as telhas e os tijolos, as mulheres fabricavam potes, panelas e pratos”, escreve a historiadora Jucélia Bispo.Até hoje a comunidade da Olaria existe e resiste. Fica na zona rural e produziu como legado a força do samba de roda. Em 2008, eram cerca de 170 famílias e uma população de mais 450 pessoas, que enfrentam “um processo contínuo de expropriação da terra e exclusão sócio-territorial”, escreve a geógrafa Janeide dos Santos.

Pracinhas, comunas e futebol No centro da cidade, já no século XX, algumas figuras ganharam profundo destaque e prestígio pela participação em eventos históricos. É o caso dos primos Fernando e Menandro Nogueira, ex-combatentes da II Guerra Mundial.

Menandro, coronel do Exército, era responsável pelas armas e munições na campanha militar. Durante uma das batalhas, conta sua filha, ele sobreviveu sem sequelas, após ser atingido e projetado por um estilhaço de um campo minado, durante deslocamento de base. Fernando era enfermeiro. Os dois não nasceram em Irará, mas por lá se estabeleceram ao retornarem do combate contra as tropas de Hitler e Mussolini.

“Meu pai passou a vida toda sendo chamado de coronel, em respeito à sua história e patente militar. Já tio Fernando virou um cara muito ligado à cultura. Ele abriu uma biblioteca muito grande, onde todo mundo podia pegar livros. Criou também uma espécie de zoológico, com pássaros, coelho e vários bichos. As escolas organizavam passeios até a casa dele”, conta Corina Nogueira, filha orgulhosa do herói de guerra do município. Menando (à direita) e Fernando Nogueira, os dois primos que lutaram na II Guerra Mundial (Foto: Acervo pessoal) Nos anos 1950, Irará passou a ser informalmente chamada de ‘Moscouzinha da Bahia’. Isso porque havia uma grande concentração demográfica de comunistas entre os habitantes, um dos quais o próprio delegado de polícia da cidade, Raul Cruz.

“Nessa época a escolha não era por concurso. Aconteceu do delegado da cidade ser também comunista. Quando perguntavam a ele se ele teria que se prender, ele respondia: ‘vou fugir para o bongue’. O bongue era uma mata numa baixada, próxima ao centro da cidade”, conta o jornalista e pesquisador Roberto Martins.

Entre as fileiras do Partido Comunista do Brasil havia outras figuras iraraenses destacadas, como Aristeu Nogueira e Fernando Sant’Ana.

Nogueira, advogado formado na capital, foi membro do comitê central do partido, organizador da Revista Seiva e do semanário Movimento. Trabalhou diretamente com Luís Carlos Prestes e com o baiano Giocondo Dias na formulação de uma Revolução Proletária marxista no país, aos moldes da celebrada Revolução Russa, de 1917.

O engenheiro Fernando Sant’Ana era deputado federal quando veio o golpe de 1964. Ficou exilado no Chile e na União Soviética. Recuperou os poderes políticos com a Anistia e, em 1988, foi um ativo deputado constituinte na formulação da nova carta magna brasileira, incluindo a brava defesa do monopólio sobre as atividades de refino do petróleo.

Na cidade, em 2012, foi homenageado com uma praça, no dia que seria seu aniversário de 98 anos, se vivo estivesse. Dois comunistas: Fernando Sant’Ana e Jorge Amado (Foto: Acervo pessoal) Irará tem uma coleção de filhos ilustres. Se os comunistas um dia sonharam em conquistar o mundo, coube a Nelson de Jesus da Silva assim realizá-lo, com pleno louvor. Negro, nascido pobre, Nelson fez carreira como goleiro com o codinome Dida.

Teve curta passagem em um clube alagoano, mas despontou mesmo como cria da base do Vitória, em 1992. De lá, ganhou o mundo. Cruzeiro, Corinthians e uma sólida carreira no Milan, da Itália, onde passou uma década como guardião da meta rubro-negra.

Foi o primeiro goleiro negro a defender a Seleção Brasileira numa competição oficial desde Barbosa – este execrado pela falha na Copa de 1950 e pelo racismo imperdoável do país.

Dida foi campeão da Copa América, das Confederações, Copa do Mundo, Liga dos Campeões, Campeonato Brasileiro, Italiano e amealhou um sem-número de prêmios individuais. Era aclamado dentro de campo pela frieza, principalmente na hora de catar as cobranças de pênaltis dos vacilantes artilheiros na marca da cal.

Entre suas maiores honras, Dida ganhou o direito de ser tema das belas rimas de Kitute Coelho. O famoso cordelista da cidade publicou a poesia “o goleiro que passou a perna no juiz ladrão”, em homenagem ao arqueiro conterrâneo.

“Fiz esse cordel em 2006, quando Dida era goleiro titular da Seleção Brasileira. Queria festejar um dos nossos filhos mais ilustres, que saiu ainda menino pra morar em Maceió, mas é cria da cidade. Eu precisava reafirmar isso. O resultado é que ele adorou o cordel e passou a divulga-lo em várias partes do Brasil. Até hoje, quando ele e a esposa vêm pra cá durante o São João, me chamam pra festa na casa deles”, se diverte o poeta. Capa do cordel de Kitute Coelho sobre o goleiro Dida, publicado em 2006 (Crédito: Divulgação) Coca-Cola e filarmônica Se há, no entanto, um amálgama para tantas histórias extraordinárias desta porção de terra encravada no sertão, este se dá por meio da música. Irará é uma cidade extremamente melódica.

Ainda no século XIX foi fundada na cidade a filarmônica 19 de Junho. Do espólio dela, a partir também da fusão de um outro grupo musical, nasceu, em 1954, a 25 de Dezembro – orgulhosamente até hoje na ativa.  “Desde a sua fundação, no dia do Natal, a filarmônica nunca deixou um dia sequer de existir. É um patrimônio absoluto da cidade. É a nossa própria sociedade iraraense que a mantém, com máximo orgulho”, diz Diógenes Barbosa, vice-presidente da orquestra.Atualmente 200 jovens fazem parte do conjunto. O custo de manutenção é de R$ 3 mil, entre contas de água, luz e custeio com os professores. “Desde a pandemia, estamos com problemas para nos manter. O comércio da cidade parou e quem sempre nos ajudou também está sem dinheiro no momento”, pontua Barbosa.

Se os tempos atuais são de penúria, há sete anos, o dinheiro de uma gigante multinacional foi parar diretamente nos cofres da filarmônica. Contando assim a história parece até uma, mas é exatamente outra.

Em 2013, a Coca-Cola contratou Tom Zé para gravar um comercial inflando a autoestima dos brasileiros a receber a Copa do Mundo que, no ano seguinte, seria realizada no país. O cachê de R$ 80 mil engordou a conta bancária do músico, mas também lhe custou o sagrado sossego.

Os fãs, muitos deles de Irará, ficaram inconformados que um artista independente brasileiro se curvasse diante do imperialismo americano. Palavras dele à época: “Quando o anúncio saiu na TV, imaginei que até as opiniões contrárias seriam de comemoração. Mas agora perco o sono por causa do assunto...”

O episódio o inspirou a gravar a música “Tribunal do Feicibuque” (vídeo acima) e também a doar o dinheiro integral (descontados os impostos) à filarmônica 25 de Dezembro.

“Esse dinheiro foi muito bem-vindo na época. Construímos até uma sede na zona rural para ensinar mais alunos de forma gratuita”, relembra o vice-presidente. Tom Zé durante exposição que o homenageou na Caixa Cultural (Foto: André Uzêda) A filarmônica toca nos principais eventos de música da cidade. O gosto musical refinado orienta profundamente os iraraenses, inclusive nas escolhas políticas. Nas últimas eleições, o prefeito eleito da cidade, inclusive, foi um músico: Juscelino Souza, do DEM.

“Não tenho dúvidas que minha eleição tem relação direta com a música. Estou no meu segundo mandato e o fato de eu ter tido uma banda e tocar aqui pela zona rural da cidade me deu enorme popularidade. Irará é uma cidade extremamente musical”, avalia o político.

“A presença dos comunistas e a preocupação deles com educação, além da imagem poderosa de Tom Zé e toda sua criação, isso fez de Irará uma terra muito sensível e preocupada com a cultura. É um privilégio ser daqui”, resume o cordelista e poeta Kitute.

Com tantos acontecimentos neste torrão de terra, mesmo profundamente viajado, Tom Zé vê as maravilhas do mundo não com olhar de espanto, mas de quem saboreia o aconchego da comida de casa. Tudo soa extremamente familiar.

“Isso é muito parecido com Irará”, diz, ao avistar as esquinas de Mumbai, Macondo, Nova Iorque, Istambul ou Helsinque.

[Essa coluna é dedicada a Lavine Eloah, defensora apaixonada e pública das terras de Irará].