Com desfile mais rápido, Dois de Julho promove encontro de gerações

Os caboclos chegaram no Terreiro de Jesus duas horas antes do previsto

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  • Thais Borges

Publicado em 2 de julho de 2019 às 18:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO
Dois de Julho de 1996 por Foto: Claudionor Junior/Arquivo CORREIO

De dona Glória Melo, do alto de seus 77 anos, à vendedora que encarna a heroína Maria Quitéria há 39 anos. Das gêmeas octogenárias Gisélia e Zezinha da Silva ao menino Murilo, 6, enrolado em uma bandeira do Brasil e acompanhado da avó. Das três amigas estudantes tocando o hino da Bahia no tambor à senhorinha que, há 30 anos, monta uma fachada viva em sua casa – com a presença dos próprios netos. 

Uma coisa é certa: no Dois de Julho, tem espaço para todos. Na data cívica mais importante da Bahia, cabem diferentes gerações e anseios. Os políticos são até bem recebidos, mas mesmo eles não têm dúvida: é o povo que faz e manda na festa. Seja para observar, caminhar até o final, balançar uma bandeira ou participar de uma fanfarra, o cortejo é o próprio povo e faz tempo que diversas gerações vão às ruas da capital.

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De fato, há anos em que o povo comparece mais, há anos que comparece menos. Nesta terça-feira (2), a avaliação da Fundação Gregório de Mattos (FGM) é de que tenha sido um dos desfiles mais vazios dos últimos anos. Por conta disso, em pouco mais de uma hora, o cortejo no período da manhã chegou ao fim – os caboclos aportaram no Terreiro de Jesus por volta das 9h30. A previsão inicial era de que o percurso fosse finalizado às 11h30. “Acredito que, por conta do feriadão, a gente teve participação menor. Quando o desfile está mais vazio, ele flui mais rápido. Além disso, esse ano, não teve a efervescência política de sempre. Até por não ser ano eleitoral, os candidatos foram mais rápido e a parte política foi mais morna”, explicou o presidente da FGM, Fernando Guerreiro. Mas, mesmo quando tem menos gente, o povo continua sendo o dono da festa. Ao longo de todo o percurso, não faltam provas disso. Uma delas – muito conhecida, inclusive – costuma ir juntinho dos carros da cabocla e do caboclo. Quem já foi ao Dois de Julho provavelmente sabe: a guerreira Maria Quitéria já é quase tão tradicional quando as esculturas dos descendentes de indígenas. 

Empoderadas Só que, ao contrário dos caboclos, essa Maria Quitéria é feita de carne e osso. Mais do que isso: não passa um minuto completo sem receber pedidos de fotos. A Maria Quitéria dos dias atuais é a vendedora ambulante Romilda Anunciação, 54, que a personifica há 39 anos. Não é uma coisa oficial; pelo contrário. 

Teve a ideia, na época, por se identificar com a guerreira feirense. Acreditava que sua história de vida era parecida com a dela. "Maria Quitéria fugiu de casa, eu também fugi. Ela escreveu uma carta para o pai, eu escrevi para minha mãe", explica.  Romilda encarna Maria Quitéria há 39 anos (Foto: Thais Borges/CORREIO) Mãe de três filhas, nunca recebeu nenhum tipo de incentivo para reviver a personagem."Enquanto eu estiver viva, vou estar participando dessa festa”, garante.Dessa vez, estava sozinha, mas, em anos anteriores, chegou a levar seus netos – sempre caracterizados como personagens da Independência da Bahia. 

Foi assim que sua própria paixão pela data começou: quando criança, era levada pela tia para acompanhar os desfiles. “Minha mãe não gostava, porque tinha que trazer nove filhos. Era muito lanche para comprar”, brinca. 

Assim como Quitérias – a da história e a do presente – outras mulheres mostram sua força no Dois de Julho. Há seis anos, as estudantes Naiara Santos, 16, Natália Santos, 18, e Uiliane Mirian, 21, participam da data com o projeto Tambores e Cores, que fica no Pelourinho. Dos pouco mais de 80 jovens integrantes, apenas sete são meninas. 

"Tem essa questão do machismo, que muitos acham que menina não pode tocar, não pode carregar peso, mas menina pode fazer tudo que quiser", diz Uiliane.Para elas, a melhor parte do cortejo é justamente tocar músicas que vão do hino da Bahia ao samba reggae. "Acho que falta conhecimento para os jovens se interessarem pelo Dois de Julho. A educação não ajuda as pessoas a conhecer a história", afirma Natália. Diferentes gerações participaram do Dois de Julho (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Crianças  Entre os pais, um sentimento comum é justamente o de mudar isso. A maioria cresceu indo ao cortejo, incentivada pela família. Hoje, tentam despertar a mesma admiração na história nos filhos. É justamente esse o caso da a servidora pública Catarina Mello, 46. Ela costumava ir com os pais, quando criança, mas, até esse ano, nunca tinha trazido a filha, Rafaella, 9. Ficava apreensiva com a aglomeração.  Catarina levou a filha, Rafaela, pela primeira vez (Foto: Thais Borges/CORREIO) Mas, ao ver a organização, decidiu trazer a menina. "A gente acaba perdendo essas tradições, mas estou tentando resgatar com ela. Eles precisam conhecer a história para se importar com ela", diz. Moradoras de Lauro de Freitas, saíram de casa às 6h10. Mesmo assim, Rafaella afirma que não teve problemas em acordar cedo, às 5h30. "Achei legal, é um dia diferente", completa a menina.

Enquanto isso, a comerciante Nilzian Brito, 48, já levava o neto, Murilo, desde os primeiros anos de vida. Com seus seis anos – prestes a completar sete – o garoto já é figurinha frequente nos desfiles. “Antes, eu trazia só para passear. Hoje, eu já vou explicando mais. Por isso, desde ontem, ele já estava perguntando que horas a gente vinha hoje”, orgulhava-se a avó.  Nilzian levou o neto, Murilo (Foto: Thais Borges/CORREIO) Na casa da família da aposentada Maria de Fátima Cerqueira, 57 anos, as gerações se misturam. Lá, a tradição é se reunir para ver o cortejo passar. Logo cedo, Maria de Fátima arrastou sua cadeira para a porta da casa de uma tia de 90 anos, no Corredor da Lapinha, para ver tudo do começo. Já estava acompanhada da filha, do afilhado, do neto e de alguns sobrinhos, mas pelo menos outras dez pessoas eram esperadas.  Maria de Fátima (segunda à esquerda) observa o cortejo com a família (Foto: Thais Borges/CORREIO) "Coloquei uma prótese na perna há um mês, mas não podia deixar devir. Vou ficar aqui sentadinha, mas não perco. A primeira vez que vim, eu tinha 6 anos. Mudou muita coisa, mas a gente tem que prestigiar", diz, sem deixar de criticar o aspecto mais político da festa.Antes, conta, era só comemoração. Mesmo assim, tenta fazer com o neto, o pequeno Gabriel, 4, o mesmo que fazia com as filhas quando criança. "Trago para conhecer desde cedo. Quando ele chegar numa idade de escolaridade que possa entender melhor, já vai saber a história. A mãe dele não veio hoje, porque está trabalhando, mas minha outra filha está de folga e veio", conta, referindo-se à farmacêutica Marília.

Fachadas Mesmo que tenha tido menos gente no percurso, esse ano, uma coisa não mudou. A adesão ao concurso de fachadas com alusão à Independência da Bahia ficou na mesma média de participantes dos anos anteriores – ou seja, aproximadamente 10 concorrentes. O edital do concurso foi lançado em maio, pela prefeitura, e prevê três vencedores entre a Lapinha ao Terreiro de Jesus, sem necessidade de inscrição prévia. 

As premiações que vão de R$ 2 mil (para o primeiro colocado), R$ 1,5 mil (segundo colocado) e R$ 1 mil (terceiro colocado). “Esse ano, estabilizou. Ainda que (a festa) tenha sido extremamente prejudicada pelo feriado, quem faz a fachada manteve pela tradição”, disse o presidente da FGM, Fernando Guerreiro. A previsão é de que o resultado seja divulgado até a próxima semana. 

Uma delas foi a comerciante Amélia de Barros, 76, que mora na Lapinha há 50 anos. Com ajuda da filha, decorou a fachada da casa de três andares com bandeiras do Brasil e da Bahia, além de bandeirolas, bonecos juninos e uma imagem de um caboclo. Filha de uma indígena tupiniquim, gosta de homenagear sua relação com os caboclos.  Amélia e a filha prepararam a fachada (Foto: Thais Borges/CORREIO) “Sempre fiz e nunca ganhei dinheiro. Faço por amor mesmo. Para mim, é tradição. Dessa vez, a maioria dos filhos não veio porque um neto está hospitalizado, mas não deixo de fazer”, contou. Ela estima ter gastado cerca de R$ 2,5 com a ornamentação. Mais à frente, a casa de dona Maria São Pedro Santana, 79, é famosa por sua fachada viva. Há 30 anos, ela decora o local onde mora com a ajuda de uma das filhas, que é estilista, e recria os personagens, interpretados por seus netos. O hábito também veio para comemorar seu aniversário: dona Maria não podia ter nascido em outra data que não o Dois de Julho. “Eu passo um ano trabalhando nos detalhes. É minha festa preferida”, explicou.A decoração desse ano teve centenas de flores coloridas com papel crepom, feitas pela filha, a designer de moda Néa Santtana, 32. “A gente investe bastante, mas investe também por ser o aniversário dela”, disse Néa, referindo-se à dona Maria. 

Em duas janelas, ficam Laís, 21, e Vicente, 7, representando a cabocla e o caboclo, respectivamente. Na frente da casa, em um banco, fica Larissa, 17, que é outra Maria Quitéria de carne e osso. Ela aprendeu o gosto pela festa com a avó. “Todo ano, a gente participa. Para mim, é muito gratificante. Nem sinto calor”, disse a adolescente, referindo-se à roupa de militar. 

História É difícil, para quem viveu tantos anos de Dois de Julho, conseguir deixar de ir. Dona Glória Melo, 77 anos, mora na mesma casa, no Corredor da Lapinha, desde que nasceu. Quando criança, viu o pai se envolver com a organização da festa, enquanto ela desfilava com as escolas.  Dona Glória acordou cedo para ver a alvorada (Foto: Thais Borges/CORREIO) Mesmo achando que muita coisa mudou, não deixa de acordar cedo para acompanhar o início do cortejo cívico na varanda de casa. "O que mais gosto é por ser uma manifestação popular, do povo. É o povo que continua alimentando e as pessoas de idade vêm porque acreditam na história", disse a aposentada, que acompanhou a alvorada de fogos às 6h.

As irmãs gêmeas Gisélia e Zezinha da Silva, 81, também saem do Barbalho todo ano para acompanhar o desfile."Acho muito bonito. Viemos a primeira vez jovenzinhas, depois de ter conhecido a história. Nunca mais deixei de vir", afirmou Gisélia.O guia de turismo Antônio Brandão, 66 anos, cresceu vindo ao Dois de Julho. "Vivi isso. Depois li sobre, mas vivi tudo antes", contou. Nos últimos anos, nem sempre consegue vir ao cortejo. Antônio Brandão costuma usar o cocar em festas populares (Foto: Thais Borges/CORREIO) Mas, quando vem, está vestido a caráter. O cocar, por exemplo, é uma lembrança de sua mãe, que era índia tupiniquim. "Sempre tento vir assim nas manifestações populares porque eu vivo de história".