Com lenço, com documento: projeto ajuda presas a recuperar registros em Salvador

Ao todo, 113 detentas participaram de ação nesta terça-feira (25). Segundo o Ministério da Justiça, oito em cada dez presidiários no Brasil não têm documentos em prontuário

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de julho de 2017 às 15:46

- Atualizado há um ano

Quando Graziele Oliveira, 27 anos, foi presa, há quase dois anos, todos os seus documentos foram perdidos. RG, CPF, carteira de trabalho... “Pegaram todas as minhas coisas, mas eu não consegui recuperar”, lembra a jovem, que está presa na Penitenciária Feminina desde então. Ficou assim, sem liberdade, sem documento, até a manhã desta terça-feira (25), quando a unidade recebeu o projeto Identidade Cidadã, promovido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Graziele (de laranja, à esquerda) tirou a 2ª via da certidão de nascimento e pretende se casar (Foto: Marina Silva/CORREIO)O programa, criado em 2015, promove uma espécie de mutirão para emissão de documentos para as pessoas que estão encarceradas, além de atendimento médico. Só no presídio feminino, 110 detentas participaram da ação – além de outras três que vieram do Hospital de Custódia.Graziele conseguiu uma nova certidão de nascimento, que é o ponto de partida para todos os outros documentos – inclusive, o que ela mais tem desejado: a certidão de casamento. Graziele pretende se casar com Sirleide, uma ex-detenta da penitenciária. As duas estão juntas desde novembro de 2015, mas tiveram que lidar com uma separação brusca, há pouco mais de uma semana. Foi quando Sirleide foi solta. “Ela está vivendo na casa de minha família, no Lobato”, conta. A noiva, que é de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), ainda não veio visitá-la, mas é aguardada com ansiedade. “Por isso achei bom isso aqui (o projeto). Achei ótimo”. Pelo menos, enquanto sua próxima audiência – marcada para setembro – não chega. 

Graziele foi presa em setembro de 2015, sob acusação de tráfico de drogas. Na ocasião, foi levada com sete homens, todos do Lobato, onde moravam. Na ação, segundo ela, 98 pessoas são citadas. Na época, a polícia se referiu ao grupo em releases oficiais como uma quadrilha responsável por “mais de 20 homicídios na região do Lobato”. Agora, diz que pretende fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e quer fazer um curso para ser cabeleireira. InclusãoParece uma coisa trivial, mas ter documentos é o que permite justamente que os detentos tenham acesso a oportunidades como o Enem, além do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e atendimentos de saúde. Quando a pessoa não tem nada disso – nenhuma identificação civil -, só pode ser reconhecida pela chamada ‘identificação criminal’, que analisa as impressões digitais. 

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“Essa é uma tentativa de promover os direitos das pessoas que estão no sistema prisional. O projeto começa numa unidade como um piloto e a ideia é que seja replicada para as outras unidades pelas secretarias (estaduais). A gente recomenda que essa unidade seja a feminina porque já é um público que é deixado ao esquecimento pela sociedade”, explica o agente federal de execução penal Rodrigo Lopes. De acordo com um levantamento do Ministério da Justiça, órgão ao qual o Depen é subordinado, oito em cada dez presos brasileiros não têm os seus documentos pessoais no prontuário. E isso acontece por motivos que vão desde a perda ou extravio do documento até a possibilidade de nunca terem tido documentos antes. 

De acordo com o levantamento do órgão federal, dos 1.331 estabelecimentos penais brasileiros, apenas 490 deles armazenam, no prontuário do preso, algum documento das pessoas sob sua custódia. E apenas 31.566 presos, do total de 363.703 pesquisados, têm algum documento pessoal em seu prontuário. A Bahia foi o 18º estado a receber o Identidade Cidadã, que já passou por estados como Goiás, Rio Grande do Sul, Sergipe e Pernambuco, além do Distrito Federal. Aqui, mesmo quem já tinha a certidão de nascimento foi incentivada a fazer uma 2ª via do documento. “Explicamos que, desde 2011, existe um modelo de certidão de nascimento novo no Brasil e que todos devem fazer”, completa Rodrigo. 

Foi o que aconteceu com Jucineide Moreira, 24. Ela já tinha a certidão, mas decidiu tirar a 2ª via no novo modelo. “É muito bom ter um dia assim para a gente. Gostei muito”, disse a jovem, que é natural de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS) e está presa há pouco mais de cinco anos, condenada a 23 anos de prisão por tráfico de drogas e homicídio.Jucineide (de laranja) fez a 2ª via de documentos e aproveitou para ir se consultar com médicos (Foto: Marina Silva/CORREIO)A diretora do Conjunto Penal Feminino, Luz Marina, comemorou a iniciativa. “É muito importante termos essas parcerias com os três segmentos (governos federal, estadual e municipal – que participou do atendimento de saúde) para a inclusão, porque a nossa proposta é agregar a sociedade e ressocializar (as detentas). Queremos e tirar aquele mito que aqui só tem fera enjaulada”, reforçou.

No atendimento clínico, a médica Maria do Socorro Correia destacou que o atendimento incluía, inclusive, a realização de exames posteriores e o uso de medicamentos. “A maioria chegou aqui com relatos de ansiedade e de problemas no estômago, tipo gastrite, que também tem muito a ver com ansiedade”. Na penitenciária, elas ainda contam com uma nutricionista. A detenta Célia de Jesus decidiu fazer a consulta com a médica para fazer um check-up. “Sempre que tem alguma coisa aqui assim (como o projeto Identidade Cidadã), eu só tenho a agradecer, por tudo que eles (agentes do sistema penitenciário) têm feito por nós”. Natural de Brasília (DF), ela foi presa em 2014, acusada de ter cometido um homicídio em Itaberaba, no Centro-Norte do estado. Foi sentenciada a 17 anos de prisão. 

O projeto deve ser levado às outras penitenciárias do estado, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), mas ainda não há datas definidas.