Comerciantes do Lobato pagam até R$ 100 por semana a facção para não serem mortos

Cobrança de 'taxa de segurança', nos moldes da milícia do Rio de Janeiro, começou há cerca de um ano; comerciante e sobrinho foram mortos por se recusarem a pagar

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  • Bruno Wendel

Publicado em 7 de setembro de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O que antes era exclusivo nos morros controlados pela milícia no Rio de Janeiro, hoje é copiado por uma facção baiana na região do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Faz pouco mais de um ano que traficantes do Comando da Paz (CP) cobram taxas semanais aos comerciantes para que eles mesmos não arrombem ou assaltem os estabelecimentos. Quando o dono da loja não aceita a extorsão ou atrasa o pagamento, tem o mesmo destino de Robson dos Santos Batista, 35 anos. Ele foi morto a tiros junto com o sobrinho, no ferro-velho da família, no Lobato, em julho do ano passado. Com medo, muitos têm fechado as portas. Entre o ano passado e esse ano, dez ferros-velhos fecharam as portas por causa do tráfico - esses estabelecimentos, que ficam no entorno da Avenida Suburbana, trecho do bairro do Lobato, são as principais vítimas. É por isso que, após as execuções de Robson e do sobrinho, Osmar Gonçalves Batista Neto, 29, no dia 30 de julho de 2019, outros donos de ferro-velho abandonaram seus negócios. Eles entenderam o recado e decidiram ir embora para não terem o mesmo fim. Os valores da 'taxa de segurança' exigida pelos traficantes variam entre R$ 50 e R$ 100 por semana. A Polícia Civil informou, por meio de nota, que está “investigando a cobrança de ‘pedágio’ para os traficantes, inclusive com algumas prisões já representadas e deferidas pelo Poder Judiciário”. Informou também que a morte de Robson foi motivada “pela recusa do pagamento das taxas” e que o inquérito policial foi remetido à Justiça no dia 6 de setembro do ano passado com autoria definida – o acusado foi preso em 19 de maio deste ano.  Segundo a denúncia feita ao CORREIO por moradores e comerciantes da região, os donos de estabelecimentos comerciais depositam o dinheiro em três contas movimentadas pela organização criminosa. O responsável por recolher o montante e comandar as extorsões é o traficante Lambão, que é também gerente da CP em Cosme de Farias, onde o comércio de drogas é chefiado por José Carlos Ferreira dos Santos, o Zóio de Gato. Zóio de Gato vem tentando se reestruturar em outros bairros, já que vem sendo atacado constantemente pela Ordem e Progresso (OP), que também está no Lobato e quer o controle absoluto do mercado de drogas do bairro.  Comprovante de depósito de uma das vítimas de extorsão da CP no Lobato (Foto do leitor) O CORREIO teve acesso ao comprovante de um desses depósitos efetuado no mês de junho deste ano. O valor foi creditado na conta 4157-4 de uma mulher de iniciais E. C. S. M. A conta é da agência 1450 da Caixa Econômica Federal, localizada na Estradas das Barreiras, no Cabula. Coincidência ou não, a agência bancária está situada próxima à Lajinha, localidade da Engomadeira, onde o tráfico é comandando pelo CP. O CORREIO perguntou à Polícia Civil sobre a investigação do referido depósito. A resposta da PC foi que a apuração “está em andamento”. Taxa Apesar de a Polícia Civil não ter fornecido mais detalhes, alegando prejuízo ao trabalho de investigação da 3ª Delegacia de Homicídios (DH-BTS)s, unidade do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), os comerciantes e moradores disseram ao CORREIO que a taxa é cobrada aos estabelecimentos localizados na Avenida Pontilhão, um dos acessos ao Lobato, e às margens da Avenida Suburbana, que compreende entre o novo viaduto Lobato x Pirajá e as imediações ao Atacadão Supermercado.  Em todos os relatos, os entrevistados tiveram seus nomes preservados porque correm risco de morte. Eles disseramm que  as taxas passaram a ser cobradas um junho do ano passado. Os valores variam de acordo com o tamanho do ponto comercial.“Os traficantes começaram a levar panfletos para os comerciantes, avisando que a partir daquele momento teriam que pagar uma taxa semanal. Depois disso, o pagamento passou a ser feito por deposito bancário. Eles enviam áudios ameaçando a gente”, disse uma das fontes ao CORREIO. Todo final de semana, três mulheres ligadas à CP passavam pelas lojas lembrando aos comerciantes do pagamento. “Inclusive, duas foram pegas há pouco tempo pela Polícia Militar”, relatou a fonte. No dia 31 de julho deste ano, duas mulheres foram presas por policias militares da Operação Gêmeos no bairro de Boa Vista do Lobato. No dia das prisões, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que elas integravam uma facção criminosa e que ameaçavam comerciantes. A dupla estava com munições e drogas. Um homem que estava com elas acabou morto pelos policiais. 

Comerciantes Nesta quinta-feira (03), o CORREIO circulou pelo trecho onde os traficantes praticam a extorsão e, depois de várias tentativas, apenas seis comerciantes concordaram em falar – cinco foram donos de ferros-velhos. O primeiro deles disse que, uma semana antes da prisão, três mulheres ligada à CP foram até o ferro-velho. “Elas disseram: ’Os caras estão cobrando o pedágio'. Tem que pagar a taxa para trabalhar. Me cobraram R$ 80”, contou a fonte.

“Na semana que iam me cobrar, elas foram encontradas pelos policiais. Mas não vou ficar para esperar que outros voltem. Estou arrumado as coisas para ir embora. Vou para o interior”, disse ele. Há mais de 20 anos vendendo e comprando sucatas, um comerciante disse que nunca passou por uma situação como essa. “Isso nunca teve aqui. O tráfico não afetava a gente. A briga era entre eles lá e nós não entrávamos em nada. Agora, esse grupo novo que chegou aí veio com tudo”, contou. Ele disse que recebeu uma cobrança através de uma mensagem no celular.“Quando li, nem acreditei. Pedia dinheiro para eu garantir a minha segurança de minha loja e não tive escolha”, relatou ele, que paga R$80 semanalmente.Um outro dono de ferro-velho disse que deposita R$ 50. “São R$ 200 no mês. E eles não querem saber de nada. Mesmo na ocasião que não se podia abrir, por determinação da prefeitura, eles não queriam saber. Cobravam assim mesmo e isso é revoltante”, contou ele. As fontes disseram que muitos comerciantes optaram por irem embora. “Muitos não suportaram esse clima de extorsão foram em bora. A maioria dos comerciantes paga o pedágio e 10 ferros-velhos fecharam as portas para não serem mortos, pois não aceitavam serem extorquidos”,  contou mais um comerciante.  "Numa época em que as coisas estão difíceis por conta da pandemia, tenho que dar ao tráfico R$ 260 para não ser vítima deles mesmos", desabafou outro comerciante.Sobrevivente  Junto com o sobrinho Osmar, Robson foi assassinado em frente ao ferro-velho da família, que tocava há pelo menos 19 anos. Eles foram mortos na manhã de uma terça-feira, dia 30 de julho de 2019, por dois homens armados que invadiram o local, na Travessa Dois Irmãos, e dispararam vários tiros contra eles e um outro funcionário, que ficou ferido. Robson havia recusado pagar a taxa.“Ele era uma pessoa que trabalhou muito e gostava de tudo certo. Ele dizia que não ia pagar, que a cobrança era uma afronta. E ele era um homem corajoso, mas coragem não para bala”, contou um morador do bairro.Mas, o sucateiro Robson e o sobrinho não foram as únicas vítimas punidas severamente pela CP. No dia 27 de maio, o dono da Sucataria União  foi baleado em frente ao estabelecimento, situado na Rua União. Ele foi atingido na cabeça, tronco e nádegas, mas sobreviveu. Assim como os demais, o comerciante pagava semanalmente o pedágio - no caso dele, R$ 100. Mas, com as medidas restritas por conta da pandemia, ele ligou para Lambão e argumentou que não tinha como pagar a taxa de “segurança”, uma vez que seu estabelecimento estava fechado devido ao decreto municipal. Diante da recusa, Lambão ordenou sua morte para servir de exemplo. No dia do atentado, o homem foi monitorado e emboscado por Betão - filho de um sucateiro -, Veio e Everaldo, todos integrantes da facção. Everaldo é o homem de confiança de Lambão e responsável por uma sucataria onde seria do chefe - no local, todo final de semana, carros roubados são desmanchados. Guerra  A cobrança do 'pedágio' está diretamente ligada à guerra entre duas facções. No Lobato, o Comando da Paz é maioria. A facção controla o tráfico nas localidades de Alto do Cabrito, Bela Vista do Lobato, Jardim Lobato, Rua E e em todo o território às margens da Avenida Suburbana, que corta o bairro. Já a facção Ordem e Progresso está estabelecida na Avenida do Pontilhão e na Prainha do Lobato e tenta se expandir, ao mesmo tempo em que luta para não perder os territórios que antes eram da arquirrival.  “A guerra entre as facções vem aterrorizando os moradores do meu bairro, nos sentimos coagidos a todo instante. Mais de 30 famílias foram embora daqui por conta da guerra deles (CP) com a OP. Tem rua aqui próximo que só tem uma pessoa morando. A CP tem interesse em tomar a região, por isso os constantes tiroteios. No dia 8 de agosto deste ano, duas pessoas inocentes foram baleadas, uma com tiro na mão e outra com tiro na cabeça”, disse um morador. Ele não soube informar o estado de saúde das vítimas.  Nessa guerra, duas mulheres e uma adolescente foram assassinadas no mesmo dia no Lobato, no dia 4 de dezembro de 2019. Elas foram retiradas de um prédio e executadas por homens que procuraram o namorado de uma delas, que é envolvido com o tráfico.  As vítimas, Geisiane Santos Jesus, 24 anos, Joice Amorim dos Santos, 22, e Júlia Vitória Ramos, 16, trabalhavam passando rifas. A adolescente estava grávida, segundo uma amiga contou na ocasião, e era conhecida como Guêga. Todas foram encontradas com marcas de tiros, em sua maioria nos rostos.

Elas estavam em um prédio, em Santa Luzia do Lobato, onde moravam Geisiane e Joice, e foram retiradas do local por um grupo armado e executadas a poucos metros da casa de Júlia. Ainda não há identificação dos criminosos. Segundo moradores da região, Júlia mantinha um relacionamento com um traficante, que era procurado pelos assassinos.