Como alguém que levasse uma pancada ou um tombo

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  • Kátia Borges

Publicado em 30 de março de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Como alguém que levasse uma pancada na cabeça e olhasse em volta atordoado, sem reconhecer a origem da agressão. Todos em torno pareciam calmos em seus afazeres. Todos. Como se nem notassem. Talvez do céu, quem sabe, um meteoro. Ele estava no chão de repente, sem saber direito o que o atingira, de onde viera, quando lhe aconteceu outra coisa. Pôs a mão sobre o peito, a sentir o coração, e não havia nada.

No espaço vazio onde antes o órgão habitava, apenas silêncio. Como alguém que se pensa louco de súbito, e está na rua e tudo gira mais e mais rápido. E, doente assim, refém do abandono, depende apenas da bondade dos estranhos. Talvez houvesse uma conexão entre o tombo e aquela sensação de que já havia visto aquilo antes. E ainda podia sentir o modo como o estrondo causara certo tremor em suas mãos.

O que trazia, com que as ocupava? “Às vezes é assim mesmo. De sacudida, a vida tem seus modos”, disse-lhe o moço que varria cuidadosamente o passeio no entorno da praça. Parecia conhecido, um colega de escola. Não, não. Parecia o moço do anúncio de dentadura. Reconhecera pelos cabelos muito brancos. Sabe aqueles que não notam os subalternos? Gente como aquele homem que varia, gente que mexe com o lixo, que prepara e serve o que comemos. Bom, o homem caído era desse modo.

Para ele, cada ser humano funcionava como uma espécie de placa bidimensional. Ele olhava e eu não enxergava, ele fingia que não. “Aqui estou eu”, disse o homem atingido ao homem que varria. “Talvez agora o senhor já não me queira como amigo, e nem repita esta frase de consolo. Mesmo assim, cara pálida? Mesmo assim como? Olha quem fala, vê-se logo que nunca sofreu um enxovalho, firme e gentil em sua farda”. “A vida nunca o atingiu, admita. Nem mesmo quando o vento de pirraça espalha as folhas, depois que o senhor as juntou pacientemente em um canto”.

O homem atingido por alguma coisa nunca sofrera um enxovalho. “Não me ajude,

não me pegue pelo braço, breve me recomponho”, dizia. E o homem que varia já não queria ajudar mesmo. Apenas seguia em seu serviço de juntar as folhas, enquanto escutava. “Imagino o seu drama quando chove. As ruas alagam e é preciso limpar as valetas para que ninguém escorregue. E, no verão, com esse brim, e as nódoas de suor que ensopam o azul. Ora, deixe, não me toque que sinto os germes”.

Como alguém que levasse uma pancada na cabeça, um tombo ou quase, como alguém que duvidasse de onde viera aquela agressão. Todos em torno pareciam cúmplices. “Deixa que já me levanto”, repetia o homem caído no chão. “Deixa que já me levanto e ando de volta a um lugar que não existe. Eu vinha por aqui a troco de, a troco de ir até ali, de fazer algo de que esqueci completamente”. E num repente, então de pé de novo, o homem que caiu tomou posse de todo seu ódio.