Como ficarão os ritos do candomblé em casos de morte pelo coronavírus?

por Carlos Alberto Caetano

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  • Da Redação

Publicado em 27 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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A existência de ritos lustrais fúnebres para coroar a passagem de pessoas iniciadas no candomblé por esse plano da existência humana não é segredo, embora seus detalhes e especificidade sejam. Esses ritos foram amplamente noticiados na partida de minha mãe de santo, Iya Stella de Oxossi, para o Orun, uma vez que foi necessário recurso à Justiça humana para que ela tivesse esse direito assegurado.

Agora, com a pandemia do coronavírus, peço, em primeiro lugar, que nossos ancestrais nos protejam e que Exu nos ajude a segurar nosso corpo sob nossa cabeça, ante essa ameaça. Mas, não posso deixar de pensar, simbolicamente, que o ocorrido com Mãe Stella pode ter sido um sinal, no sentido de que temos que redobrar os cuidados para que todas as pessoas iniciadas tenham esse direito assegurado após fazer a passagem para o outro plano da existência, ou até mesmo para fazer a passagem. Valha-nos, Oxóssi, para quem esses rituais foram iniciados. Com a devida licença, pai. Agô. Mo juba. Li no noticiário nacional que as famílias das pessoas que morrem pelo coronavírus estão sendo impedidas de ter acesso aos corpos para despedidas e enterros, como medida de prevenção. Isso me deixou assustado, embora seja compreensível do ponto de vista de conter uma pandemia. Mas, e no caso de morte de pessoa iniciada, se vier a ocorrer? Sabe-se que para tudo existe um jeito, mas acho melhor conversar publicamente sobre isso, publicando essas reflexões. Cabe aos nossos mais velhos nos orientar nesse sentido. Fui pesquisar sobre a Nigéria para saber como está essa questão do coronavírus por lá e me surpreendi muito. Vamos aos fatos: “No sábado, 21 de março de 2020, às 21h37, horário da Nigéria, o primeiro caso de uma pessoa infectada com Covid-19 foi confirmado em Ibadan, Estado de Oyo. Esta revelação foi feita em um post compartilhado pelo Governador do Estado de Oyo, Sua Excelência, Seyi Makinde”, conforme publicação na internet de fonte que considerei confiável. Junto com essa informação o mesmo site informa em outra publicação, assinada por Clement Adebamowo, médico e professor da University of Maryland School of Medicine, ligado ao Institute of Human Virology, sobre a necessidade de cuidado: “coronavírus causa ikú àkúfà”. Vamos interpretar: não conhecia a expressão “àkúfà” e descobri que pode ser “morte prematura” (todo mundo sabe que ikú é morte), mas preferi traduzir por “morte que provoca morte” e achei que combinando as duas traduções temos uma boa aproximação, já que Yoruba é uma língua complexa. Ou seja, uma morte prematura provocada por outra morte, esta última contagiosa. É mais do que sabido que existe uma máxima que diz que ninguém morre antes da hora, de uso no senso comum, muito presente em algumas místicas religiosas. Continuando com o texto veiculado por Clement Adebamowo, na Nigéria, ele afirma que: “O venerável Bolaji Idowu nos lembrou que muitos africanos ainda temem seus deuses mais do que os deuses das novas religiões. Lembre-se de que muitas religiões têm mitos, histórias e sacrifícios cujas origens se perdem na névoa do tempo. Então, vamos tentar esse novo mito para comunicar o coronavírus e convencer as pessoas a levá-lo a sério”. Bolaji Idowu, mencionado como venerável por Clement Adebamowo, foi um líder nigeriano da Igreja Metodista da Nigéria, falecido em 1993, muito conhecido por estudos etnográficos sobre o povo Yoruba, com diversas publicações de importância reconhecida no meio acadêmico. Necessária a ressalva de que se trata de um pesquisador de outra religião que é citado por algo que falou no século passado. Mas, vamos ao que este texto se propõe especificamente a problematizar e que diz respeito a eventual morte de sacerdotes ou sacerdotisas do candomblé, e à necessidade inicial de se aceitar que podem ocorrer mortes prematuras, causadas, nesse caso, pelo coronavírus. Pode ser difícil aceitar isso, mas é o ponto de partida. O texto diz ainda que “o coronavírus ( chamado de Koro) causa "Ikú Ákúfà" - uma maldição terrível em que, quando uma pessoa morre, ela faz com que outras pessoas ao seu redor as sigam nos braços da morte. Literariamente, significa "a morte que faz com que outros morram" ou como as pessoas da gramática chamam de "contágio".  O que é essa coisa terrível? É uma condição pela qual as pessoas que não praticam distanciamento social podem pegar Koro e algumas delas podem morrer”. Então, está combinado: pessoas podem ter morte prematura em decorrência do Koro e nesse caso o texto trata como sendo uma maldição. Como evitar isso? Aceita essa interpretação, vejamos o que o texto nigeriano sugere no caso do Koro, falando com população acostumada a encantamentos e ditos oraculares, ou seja, os adeptos do culto aos orixá, por exemplo: “Se alguém tem Koro e você não segue esses encantamentos e ditos oraculares chamados #flattenthecurve, como achatar a curva, você pode pegar a doença e morrer com ela”. Achatar a curva, nesse caso, deve ser entendido no sentido de como evitar a morte por contágio através da aproximação com algum morto pelo coronavírus. Aí começa o problema. O texto usa a figura de um sino que você deve tocar invocando proteção espiritual, como ocorre em rituais nos terreiros de candomblé. Acompanhe, porque o texto sugere atitudes como sendo prescrições oraculares. “O oráculo diz que “não participe de grandes reuniões - particularmente cerimônias funerárias de quem morre de Koro; (toque seu sino 3 vezes) lave as mãos com água e sabão enquanto mantém a respiração o maior tempo possível, o maior número de vezes possível durante o dia; o toque do sino deve ficar o mais longe que você puder, de modo que você possa gritar e ainda ser ouvido pelos seus vizinhos; toque o seu sino até que os deuses estejam satisfeitos, não participe de reuniões com mais de 5 pessoas; toque o seu sino 3 vezes, se alguém tiver sintomas de Koro, essa pessoa deve ficar em casa até 2 dias de mercado (14 dias), durante os quais contemplará o esplendor da vida, amor e comunidade; Ao toque do sino é sugerido que você se ajoelhe, se prostre ou acene para cumprimentar, e não abraçar, beijar ou apertar as mãos; o toque do sino lembra que os deuses cancelaram todos os festivais até que sejam felizes; portanto, evite todas as reuniões e congregações; com o toque do sino você vai saber quando os deuses estiverem satisfeitos, você saberá porque a OMS (Organização Mundial de Saúde) o dirá. Agite o sino até estar cansado ou precisar comer / beber. Aqui o texto faz uma conexão entre o toque do sino místico/simbólico e a informação científica da OMS.

A figura usada pelo texto de tocar o sino como sinal de reflexão e alerta, relacionada ao hábito religioso de tocar instrumentos para saudar os orixá, é muito interessante e busca exatamente dialogar com as populações mais tradicionais que são usuárias dessa prática como referência de concentração e invocação das entidades. Bom, no meio do texto vem a sugestão de que o oráculo diz que “não participe de grandes reuniões - particularmente cerimônias funerárias de quem morre de Koro”, isto nos indica uma pergunta que retrata uma certa perplexidade: como fazer ritos fúnebres de sacerdotes/sacerdotisas que partirem por contágio com o Koro (não interessam os detalhes desses ritos), sem expor à morte precoce os praticantes desses ritos fúnebres? Assim, está posta a questão para reflexão. Quem é de candomblé me entende. Quem não é, pode buscar entender. O fato é que os órgãos oficiais de saúde devem procurar evitar qualquer contato de familiares sanguíneos ou de orixá com pessoas que venham a morrer pelo coronavírus. E isso é um problema para se pensar. A nós, das religiões de matrizes africanas, cabe exigir na Justiça o direito à realização dos ritos fúnebres.Carlos Alberto Caetano é Iniciado por Mãe Stella de Oxossi há 23 anos, além de Doutor em Geografia pela Unicamp-SP e professor assistente da Uneb.