Como Irmã Dulce, 1ª santa do Brasil, ajudou a transformar as antigas palafitas de Salvador

Vocação da religiosa baiana canonizada em 2019 para as obras sociais começou nos Alagados

Publicado em 29 de março de 2021 às 14:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo Osid

Havia um lugar sem nome bem no miolo da Península de Itapagipe. Os operários que viviam lá não andavam por ruas pavimentadas, mas se equilibravam sobre estreitas tábuas de madeira que serviam de passagem de um lugar para outro. Suas casas não eram construídas sobre a terra firme, e sim suspensas acima da maré, sustentadas não por paredes de concreto, mas por finas estacas de madeira fincadas na areia. Quando Irmã Dulce, nascida em Salvador e a primeira santa do Brasil,  chegou lá, em 1935, o lugar que na década seguinte receberia o nome de Alagados atendia apenas pelo apelido de ‘invasão’. Foi num dos maiores bolsões de pobreza da cidade, formado no entorno de fábricas da Cidade Baixa, que a santa baiana começou sua obra assistencial. 

Ou, pelo menos, foi ali que Irmã Dulce encontrou a vocação. Fazia apenas dois anos que a religiosa tinha recebido o hábito das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em São Cristóvão, Sergipe. E ela pediu algo pouco usual na época: para ser enviada em missão de volta a Salvador. Fez questão de cuidar das pessoas da cidade onde nasceu ao invés de seguir em missão para outros países ou estados como normalmente as freiras da sua congregação fazem. Ela amava Salvador e não gostava de sair daqui para nada.

Em 1934, serviu como enfermeira, sacristã, porteira e responsável pelo raio-X no Hospital Espanhol. Depois, foi dar aulas.

Era fevereiro de 1935 quando Irmã Dulce foi mandada para ser professora de História e Geografia no Colégio Santa Bernadete, que pertencia à congregação da Imaculada Conceição, no Largo da Madragoa. Durou pouco, ela mesma dizia não ter vocação para o magistério. “Irmã Dulce, como professora, era um desastre. Ela passava todo mundo”, conta, aos risos, Osvaldo Gouveia, historiador e coordenador da Escola de Dulcismo, das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).

Seu lugar não era numa sala de aula, mas o local que recebeu as atenções da religiosa estava bem perto dali. No mês de junho, a freira de 21 anos fez contato com os primeiros operários da região que seria, na década de 1940, chamada de Alagados. Mais tarde, ela própria ajudaria a fundar, junto com o Frei Hildebrando Kruthaup, o Círculo Operário da Bahia.“Quando ela começa a atuar como professora, ela percebe que aquela era uma região mais necessitada, que ali vivia gente na miséria, operários que trabalhavam de 14 a 15 horas por dia. Era a massa trabalhadora que estava ali”, explica Osvaldo Gouveia.Inspiração divina

Por décadas, Irmã Dulce caminharia pelas palafitas dos Alagados levando comida, remédios, assistência médica, roupas e até um teto para quem vivia em situação precária. Ia de duas a três vezes por semana. Aqueles que conhecem melhor o trabalho assistencial da santa baiana, canonizada em 2019, garantem: a caridade nos Alagados não foi um escolha dela, e sim uma inspiração divina. “[Ir para lá] não foi uma questão de escolha, foi uma oportunidade. Foi onde ela encontrou todo o ambiente necessário para fazer o que o coração dela pedia”, explica Gouveia.

“Ela se deixou guiar pela providência divina. Na verdade, não foi o fruto de uma escolha, mas um fruto da vida. Ela foi onde tinha necessidade”, afirma o padre francês Etienne Kern. Ele foi pároco da Igreja de Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II e lançou, em 2015, o livro Alagados, um abraço do Céu à Terra (A Partilha), sobre a presença da Igreja Católica no lugar a partir das obras de Irmã Dulce.

Hoje à frente da paróquia de Aix-en-Provence, no Sul da França, padre Etienne não deixa de apontar como o trabalho da santa baiana deixou marcas profundas na comunidade, inclusive nele mesmo. “O povo de Alagados se beneficiou da caridade de Irmã Dulce. O primeiro legado é esse cuidado, essa atenção que o povo recebeu. Também há um legado espiritual, um testemunho de fé, de falar de Deus através da caridade. E há um legado social, pois o povo, por ter se beneficiado da atenção de Irmã Dulce, pôde ter uma autoestima maior, porque a escolha de Irmã Dulce manifestou a escolha de Deus”, aponta.

Palafitas

Havia uma explicação para ter tanta gente pobre morando na região onde Irmã Dulce iniciou sua obra assistencial. “Nos anos 1930, no processo de industrialização de Salvador, essa área foi ocupada por pessoas mais pobres, por operários, por conta das fábricas. A principal era a Fratelli Vita, que fazia vidros, copos, taças. Essa população fabril era muito pobre e isso acabou criando um bolsão de pobreza no entorno da Cidade Baixa”, explica o jornalista Jorge Gauthier, chefe de reportagem do CORREIO e autor do livro-reportagem Irmã Dulce: os milagres pela fé (Autografia, 104 p., R$ 32,90). Irmã Dulce caminhou por décadas nas palafitas dos Alagados, mas não se conformava com a situação (Foto: Acervo Osid) Também jornalista e autor do livro Irmã Dulce, a santa dos pobres (Planeta, 405 p. R$ 35), Graciliano Rocha afirma que, apesar da presença das fábricas, não havia trabalho para todo mundo, o que deixou muita gente vinda do Recôncavo e do Sertão baiano em situação precária. “Nos anos 1920, em São Paulo, onde a industrialização foi mais forte, a indústria empregava um a cada cinco trabalhadores. Em Salvador, a proporção era um a cada 30. Isso significa que a industrialização foi um pouco tardia. A cidade cresceu, estava ganhando população e não tinha como incluir grandes massas como nas regiões mais ricas”, aponta.

O resultado foi a concentração de muita gente pobre no mesmo lugar. Foi justamente nesse contexto que Irmã Dulce começou seu trabalho com os operários. “Irmã Dulce, por vocação, sempre teve o seu apostolado interessado em prestar assistência àquele contingente da população a quem faltava dinheiro, comida, moradia”, diz Graciliano Rocha.“Como em muitos lugares dos subúrbios das grandes cidades brasileiras, as dificuldades eram muitas. E com certeza tinham alguns fatores que pioravam a situação, como a proximidade com o mar, ter sido construída em cima da maré, com todos os perigos das pontes que quebravam, das casas que caíam, das pessoas que se afogavam e se machucavam até recentemente”, afirma o padre Etienne Kern.“A atuação de Irmã Dulce na região dos Alagados confunde-se com um momento de expansão populacional na cidade, onde muitas pessoas saíram do Recôncavo e do Sertão para a capital. A pobreza existente na região escancarou todo o abandono e a ausência de políticas públicas intensivas ao longo do tempo”, explica o historiador Rafael Dantas, que estuda a iconografia de Salvador no século XX.

Rotina

A desigualdades se intensificaram nas décadas seguintes, mesmo que a economia da cidade caminhasse para uma região próxima – o Lobato, onde se encontrou petróleo. Muita gente ainda vinha para Salvador buscar trabalho e era nos Alagados que ia parar. Na década de 1970, o subdistrito da Penha tinha 97 mil habitantes – 78 mil só nos Alagados. Num cenário tão pobre, pequenos gestos faziam toda a diferença. Hoje supervisor de monitores do Memorial Irmã Dulce, Ronaldo Castro, 46 anos, aponta sem titubear que os Alagados não existiriam se não fosse pela freira.

Ele mora no bairro desde que nasceu, e a família também é de lá.“Meus avós, minha mãe, meu pai, todos alcançaram. Em 1936, Irmã Dulce conseguiu que um médico fosse lá. Quando um médico ia lá, quando um operário via um médico dentro da casa dele, isso era revolução! Eu acho que o resultado do que nós somos hoje, nós devemos a ela. Não ter como ver os Alagados e não ver o trabalho dela, eu acho que os Alagados nem existiriam se não fosse ela”, afirma.Para Ronaldo, até a identidade da comunidade tem a ver com Irmã Dulce. Ronaldo Castro é o supervisor de monitores do Memorial Irmã Dulce (Foto: Paula Fróes/CORREIO) A assistência médica que hoje marca o trabalho das Osid foram mesmo uma revolução nas décadas passadas. Em 1949, a freira transformou um galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio no prenúncio do que seria seu hospital, com 70 leitos. O número de leitos foi crescendo – e o de pacientes também.“Antes da criação do SUS [1988], só tinha direito a atendimento em hospital público quem tinha carteira assinada. Nos anos 1960, quando o hospital dela se consolida, não havia um sistema de assistência social e nem pública, então a presença dela foi fundamental, vacinando crianças, cuidando de pessoas com doenças crônicas, distribuindo comida”, destaca o jornalista Graciliano Rocha.Companheiros Irmã Dulce sempre esteve à frente de suas obras assistenciais, mas não fazia o trabalho de caridade sozinha. Uma das ajudantes conheceu a freira ainda bem jovem, logo que se casou e mudou de Ruy Barbosa, no Centro-Norte da Bahia, para os Alagados. Idalci Lima Pereira, 66, ficou longe da família e tinha a religiosa como uma mãe.“Eu conheci Irmã Dulce quando eu casei, ela era bem mais velha que eu. Eu ficava muito só e pelejava para ter filho, fazia tratamento no centro de saúde ali nos Dendezeiros. Eu tinha ela como uma mãe. Como eu ia imaginar que aquela criatura que vivia pra cima e pra baixo comigo nessas palafitas ia virar santa?”, se pergunta. Dona Dadá conheceu Irmã Dulce quando se casou e foi morar em Alagados (Foto: Marina Silva/CORREIO) Dona Dadá, como é conhecida nos Alagados, onde mora até hoje, conta que Irmã Dulce batia à sua porta às 8h para as caminhadas. Iam à Feira de São Joaquim, em casas comerciais e em qualquer outro lugar onde pudesse conseguir doações aos pobres. “A gente andava, andava debaixo daquele sol, ela perguntava se eu tava cansada e eu respondia: ‘Eu tô!’. Aí ela dizia: Preguiça!’”, conta, aos risos.

Dona Dadá tem, hoje, sete filhos e 13 netos. “Lutei tanto pra ter um filho e que depois pari quatro da minha barriga e três do coração. Aprendi com ela a criar os filhos dos outros. O meu mais velho, que hoje tem 44 anos, era ela quem carregava em cima dessas palafitas, porque eu não conseguia”, lembra. Irmã Dulce chegou a cair três vezes das pontes estreitas.

O aposentado José Lima dos Santos, 76, conhecido na comunidade como seu Zezito, chegou aos Alagados na década de 1960, aos 20 anos de idade“Ela viveu muito isso aqui quando era mais jovem. Era um trabalho impressionante para uma criatura frágil como aquela. Esse trabalho dela foi tão eficaz que ela precisava mesmo ser uma santa”, conta seu Zezito, que afirma com orgulho ter tido a felicidade de abraçar Irmã Dulce algumas vezes.Ele conta que a freira não media esforços para prover a comunidade do que precisava. “Era difícil uma pessoa sair de uma consulta com o médico e ir numa farmácia, porque ela mesma arranjava os remédios. O diácono Helvécio Tavares distribuía os medicamentos, eram sacos de medicamentos”, conta.

Terra santa O diácono Helvécio é um dos nomes apontados pelo padre Etienne Kern como um dos herdeiros de Irmã Dulce. Para ele, Alagados é uma terra santa. “Onde os santos passam, Deus está. E, realmente, santos passaram por ali, santos conhecidos, como São João Paulo II, Santa Tereza de Calcutá, Santa Irmã Dulce, que são santos conhecidos, canonizados. E tem também santos totalmente desconhecidos, que as pessoas não conheceram, mas que marcaram muito o povo lá. Eu fui tocado pelos santos que eu encontrei lá na época eu fui pároco”, diz o padre.

Atual pároco da Igreja de Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II – construída em 1980 e abençoada pelo papa que também foi canonizado –, o padre Tomás Guist’hau diz que a herança de Irmã Dulce não é apenas institucional.“Eu acho que dentro do bairro, as pessoas ainda estão com esse espírito de Irmã Dulce. Tem esse espírito de solidariedade, as pessoas estão cuidando umas das outras e eu conheço pessoas que de fato são herdeiros de Irmã Dulce, no dia a dia. É um amor que não faz muita zoada. A zoada é dos tiros. O ruído da caridade é mais discreto”, afirma. Santuário da Santa Dulce chegou a receber 30 mil fiéis por mês antes da pandemia (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) Santa Dulce influencia o entorno das Osid

Não restam dúvidas de que os lugares onde Irmã Dulce iniciou seu trabalho social eram marcados pela pobreza. Mas a atuação da freira também contribuiu para a mudança do cenário desses locais. Nos Alagados, por exemplo, já não há mais palafitas; em 1997, elas ainda eram mais de 1,2 mil construções.  “Ela não se conformava com as palafitas. Na década de 1940, se aterra tudo e começa a construir casas de alvenaria. Ela perseguia aquilo como um objetivo”, explica Osvaldo Gouveia, historiador e coordenador da Escola de Dulcismo. Para ele, a freira contribuiu, sim, com a urbanização dos locais onde passou. Os jornalistas Jorge Gauthier e Graciliano Rocha, autores de livros que falam sobre a história de Irmã Dulce, concordam. “Na instalação das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) nos anos 1960, a cidade já estava mais desenvolvida do que nos anos 1930, mas muitas coisas foram instaladas naquela região em função das Obras Sociais. Toda a região dos Mares foi desenvolvida do ponto de vista habitacional, de montagem de lojas e assistência”, afirma Jorge. “O hospital dela hoje é o que atende 100% SUS, são milhões de atendimentos por ano e é óbvio que isso cria uma transformação da paisagem do bairro. Outro aspecto é que Roma se transformou após a morte da Irmã Dulce, virou um ponto de peregrinação e turismo religioso. Isso cria um legado para o bairro porque as pessoas circulam por ali, comem por ali, deixam algum dinheiro por ali”, completa Graciliano Rocha. Para o arquiteto Luiz Antonio Cardoso, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Faufba), não é que as Osid tenham mobilizado a urbanização da região, mas certamente auxiliaram no processo de retomada das atividades na região, que sofreu um esvazimento por volta da década de 1970. “Ali naquela região tinha o Cine Roma [instalado pelo Círculo Operário da Bahia], tinha a vila operária, já era uma área urbanizada”, aponta.

A queda de algumas fábricas, contudo, provca um esvaziamento do lugar. "A Península de Itapagipe passa por um processo de esvaziamento das atividades industriais nos anos 1970 e até mesmo antes disso, porque o Empório Industrial do Norte, que é aquela fábrica maior, que cria a vila operária, ela passa por uns problemas e já não tem aquele vigor da década de 1930", diz. A instalação da Osid, a partir da década de 1960, dá um novo fôlego."A contribuilão, digamos assim, da instalação das Obras Sociais é mais no sentido de retomar uma dinâmica para a área ou até de implementar uma outra dinâmixa para a área", completa. Segundo Márcio Didier, gestor do Complexo Santuário Santa Dulce dos Pobres, o trabalho da santa continua interferindo no entorno. Antes da canonização, em 2009, o Santuário recebeu em torno de 7 mil visitantes por mês. Depois da canonização, esse número aumentou para 30 mil por mês – em alguns casos, houve 8 mil visitantes em um único dia. Com a pandemia a redução do número de pessoas nos locais, a Osid decidiu transmitir as celebrações, assistidas por mais de 500 mil pessoas. 

A Osid se prepara para, após a pandemia, receber os visitantes com mais estrutura, o que o bairro não tem hoje: faltam hospedarias e até mesmo restaurantes para dar conta da demanda. Antes da pandemia, alguns moradores já começavam a se cadastrar para receber turistas em casa.“Atualmente, temos o projeto Território Santo, que partiu daqui, mas que já é um projeto da sociedade civil, que é para oferecer às pessoas do entorno a possibilidade de crescer com o turismo religioso”, explica Didier. Rosa Brito, coordenadora de Turismo Religiosa das Osid, diz que o projeto está pensando em sinalização e capacitação, gratuita, para moradores da Península de Itapagipe, o que incluir cursos para guias e ate de idiomas. “Também vai começar agora em 2021 um mestrado profissional com 50 projetos voltados para o desenvolvimento do território e de gestão social, na Faculdade de Administração da Ufba”, afirma Rosa. 

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