Como o ensaio para a Segunda Guerra salvou a festa de Iemanjá no Rio Vermelho

Tentativa do Galícia de construir estádio no bairro poderia ter sepultado a festa da Orixá das águas

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  • Da Redação

Publicado em 19 de janeiro de 2020 às 10:23

- Atualizado há um ano

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Quando o último devoto amarra a fitinha no gradil da Basílica e o sol despenca na Colina Sagrada do Senhor do Bonfim, a cidade automaticamente converte os festejos a Oxalá pela ânsia por saudar a mãe d’água, no dia 2 de fevereiro.

A festa de Iemanjá é a única no calendário das manifestações populares da Bahia exclusiva do candomblé, sem necessariamente forçar associação a um santo católico. Desde 1923, a celebração tem endereço fixo: o Rio Vermelho. Milhares de devotos ocupam a praia da Paciência, formam fila no Largo de Santana e espalham-se pelas vielas do bairro, desde a noite da véspera, no intuito de propor um agrado à orixá-mãe. A memória histórica reconstrói a origem da celebração por meio de pescadores que, aflitos pela míngua de peixes na costa atlântica naquele período, apelaram para construção de um farto balaio como afago contra a escassez.

Em 1936, a festa de Iemanjá tinha apenas 13 anos de iniciada. O número de adeptos nem de longe remetia à popularidade que acumularia nas décadas seguintes. E foi exatamente neste ano que, por muito pouco, uma decisão esportiva não sepultou a cerimônia e modificou a vocação boêmia do bairro. Reprodução do extinto jornal O Estado da Bahia (Foto: Acervo Pedro Uzêda) Perto do Natal, o extinto jornal “O Estado da Bahia” noticiou com destaque o furo de reportagem sobre o novo estádio do Galícia Esporte Clube, que seria construído no Largo da Mariquita, no Rio Vermelho.  Em 1º de janeiro de 1937, o furo se confirmou. O presidente da época, Domingos Garrido, inaugurou a pedra fundamental e fez um discurso otimista prevendo a inauguração oficial para dezembro daquele mesmo ano.

Clube de colônia O Galícia tinha sido fundado exatamente quatro anos antes – em 1º de janeiro de 1933. Nasceu marcadamente como um clube de colônia espanhola, essencialmente de migrantes vindos aos magotes da região da Galícia (o que explica a escolha do nome da agremiação). Naquele período, a principal praça esportiva da Bahia era o estádio Arthur de Morais, o famoso Campo da Graça, que só perderia seu protagonismo com a inauguração da Fonte Nova, em 1951.

O projeto do clube azulino era audacioso. Além de um campo de futebol, previa espaço também para outras modalidades, tais quais tênis, natação, vôlei e basquete. A iniciativa foi louvada pelos jornalistas, que maldiziam a funcionalidade do Campo da Graça. “(...) só nos serve ao futebol, assim mesmo, sabe Deus como...”.  

A franca inspiração era o Vasco da Gama, clube também de colônia (neste caso, portuguesa), que tinha inaugurado seu estádio, o São Januário, na então capital da República, em 1927. Antigo Campo da Graça, criticado por não ter estrutura para abrigar grandes jogos (Foto: Reprodução) Para financiar a empreitada, o presidente Domingos Garrido articulava um voluptuoso empréstimo junto ao governo espanhol. Caso fosse inaugurado, o novo estádio (seria o primeiro privado da Bahia – o que só se confirmaria 60 anos depois, com o Barradão) mudaria completamente o Rio Vermelho, àquela época, ainda conservando marcas das temporadas de veraneio, a colônia de pescadores e os antigos sobrados do final do século XIX.

É curioso pontuar que o bairro já tinha, no entanto, uma vocação esportiva. Antes do Campo da Graça se tornar a principal praça de Salvador, as partidas eram disputadas primeiro no Campo da Pólvora, em Nazaré. Depois, veio o campo do Rio Vermelho, na rua da Fonte do Boi. Desde o século XIX, havia também no bairro o hipódromo, onde ocorriam as disputas e apostas de turfe entre os endinheirados soteropolitanos.

Mesmo com a inclinação esportiva do logradouro, o que o projeto do Galícia propunha não tinha precedentes. Em meados dos anos 1930, o futebol caminhava para a profissionalização definitiva e estabelecimento de uma rivalidade fervorosa, entre clubes como Ypiranga, Bahia, Galícia e Botafogo.

O projeto de estádio não só colocaria o Galícia léguas à frente dos seus rivais, como também, caso ficasse pronto, seria responsável por inserir Salvador entre as cidades desenvolvidas no meio esportivo.

Guerra civil O que os galegos não contavam era que, do outro lado do Atlântico, a guerra civil espanhola se intensificaria de tal maneira que se tornaria um ensaio para a Segunda Guerra Mundial, participando, inclusive, nazistas e fascistas naquele ano de 1937.

O conflito havia começado em julho de 1936, numa disputa que envolvia católicos, republicanos, ultranacionalistas, comunistas e monarquistas. No ano seguinte, Hitler (Alemanha) e Mussolini (Itália) enviam tropas para combater na península Ibérica.

Hitler foi responsável por bombardear a cidade de Guernica, promovendo um massacre tão absurdo que inspirou Pablo Picasso a pintar o famoso quadro homônimo que expõe os horrores da guerra. Era só o começo de um pesadelo que a Europa e tantos outros países do mundo viveriam dali pra frente. Quadro de Guernica pintado por Pablo Picasso (Foto: Reprodução) No Brasil, ou mais precisamente na Bahia, o efeito prático do conflito é que o estádio “gorou”. Em dezembro de 1937, mês que deveria ser da inauguração, o jornal “Estado da Bahia” trouxe uma notícia em tom de profunda lamentação. “Tudo na Bahia é assim”. E prossegue: “Sem contar com nenhum auxílio, o Galícia teve que interromper as obras de construção do seu estádio”.

No fim da reportagem, o presidente galiciano arrematava: “Auxílio nenhum tivemos. O único que tentamos obter, gorou”, dizia ele, em referência aos investimentos internacionais que viriam por intermédio do cônsul espanhol. Reprodução do extinto jornal O Estado da Bahia (Foto: Acervo Pedro Uzêda) Os horrores da guerra deixaram marcas profundas e promoveram matanças sem sentido. A guerra civil espanhola ainda teve o agravante de fortalecer a abominável ideologia nazista – ainda hoje defendida por setores do atual governo brasileiro.

Na Bahia, a força de Iemanjá ressignificou o conflito, mantendo a fé, a festa e a tradição incólumes ao desenvolvimentismo estrangeiro. Odoyá!

[Esta coluna é dedicada a Pedro Uzêda, meu irmão, pesquisador da migração espanhola no mestrado em História].