Como os babas da Telebahia em Tóquio deram origem ao Dicionário de Baianês

Nos 30 anos do livro, fluminense Nivaldo Lariú relembra gênese do projeto no Japão, onde morou com baianos

Publicado em 12 de dezembro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

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A primeira 'boneca' do Dicionário de Baianês, lançado em 1991, e a versão mais recente da obra, lançada essa semana (Fotos: Divulgação) Entre as expressões que constam na letra ‘si’ do Dicionário de Baianês, uma das mais conhecidas fora das fronteiras estaduais é ‘Se oriente!’. Traduzida ao forasteiro como ‘Tome jeito!’, ela abre a clássica canção ‘Oriente’, de Gilberto Gil, que sem querer previu o destino de Nivaldo Lariú, muitos anos antes dele escrever o livro que, nesta semana, completou 30 anos de lançado e ostenta a marca de 300 mil exemplares vendidos. 

No ano de lançamento do Expresso 2222, álbum onde está ‘Oriente’, o filho de Itaperuna, no Rio, tinha 20 e poucos anos, era rapaz recém-formado em Engenharia de Telecomunicações, e considerou a possibilidade de ir pro Japão. Aliás, não apenas considerou, como foi, no distante 1972, pela simples razão de que tudo depende, diz o mestre, de determinação. 

Já apaixonado e curioso pela Bahia após ler Capitães da Areia (de Jorge Amado) na adolescência, topou um convite da antiga Telebahia para fazer um treinamento lá onde o sol se esconde, e hoje compreende que a simples convivência com uma renca de baianos em Tóquio, por quase seis meses, foi o big-bang da obra que o tornou famoso - isso depois, obviamente, de um curso de pós-graduação na vida nesta Salvador que o adotou.

“No ano que eu tava me formando (em Niterói), a Telebahia, que então se chamava Tebasa, botou anúncio no Jornal do Brasil, no Rio, recrutando engenheiros recém-formados. Eu que vi o anúncio, por ironia do destino, e chamei minha patota da faculdade para mandar os currículos. Isso foi outubro de 1971 [o dicionário nasceria 20 anos depois]. Éramos cinco, e a Telebahia demorou de responder. Aí entrei na atual Telerj, e eu tinha um mês de trabalho, quando chegou um telegrama da Telebahia, chamando para uma entrevista com o chefe do RH, que tava no Rio”, recorda Lariú. 

A viagem Era o período da ditadura militar, e um dos professores da graduação em Engenharia, por acaso, era ex-milico e, mais que isso, amigo do milico que era o tal chefe dos Recursos Humanos da Telebahia.

“Coincidência! E quando nós chegamos lá para conversar com o cara do RH, ele disse: ‘olhe, não tem entrevista nenhuma. Eu já tenho as fichas de vocês. É só vocês irem para Salvador assinar o contrato amanhã, e daqui a 15 dias irem para o Japão, fazer um treinamento”, relembra Lariú, que não era milico, muito menos menino ou oreba, e topou o rolé do outro lado do planeta. Nivaldo Lariú, autor do Dicionário de Baianês (Foto: Divulgação) Bolinha vai, bolinha vem, certo dia Lariú e os outros capitães da antena - a comitiva era formada por cinco engenheiros do Rio e seis da Bahia - passavam na frente de um campinho, na capital japonesa, quando uma expressão chamou a atenção do nosso Pedro sem Bala.

“Morávamos todos num flat, e as aulas eram numa fábrica. E no caminho tinha uma quadra que a gente passava e tava sempre vazia. E aí um dos baianos um dia falou: ‘rapaz, umbora pegar um baba uma hora dessas?’ Perguntei o que era baba, ele explicou. E aí chega no baba, um falou: ‘eu vou parar que eu tô boiado’, e outro comentou que ‘o baba demorou mais de duas horas de relógio’, e eu fui achando aquelas expressões curiosas”, conta Lariú, ao relatar o início de seu mergulho mais profundo na cultura da Bahia, já desde o princípio, pelo baianês.

Mas teve escala, claro, no japonês. “Nós todos estávamos na flor da idade, e a gente paquerava. E lá eu conheci uma japonesa, e pirei. Terminei o curso e voltei apaixonado. Durante três meses, a gente se falava por carta e por telefone. Caro pra caralho a ligação para o Japão, na época. Até que um dia eu chamei ela pra vir pra Bahia, e a maluca veio”, brinca o engenheiro-escritor, ao falar de Fusako Ishikawa Lariú, com quem foi casado durante 16 anos - ela ainda vive na Bahia, trabalhando com turismo -, e teve seus únicos três filhos. 

O trio Esse trio elétrico, nascido e temperado na Bahia, é formado pela servidora federal Cecília, hoje com 46 anos, a empresária Alice, 44, e o médico Daniel, 43. Depois dos baianos peladeiros de Tóquio, são eles que formam a divisão de base do Dicionário, que foi registrado na Biblioteca Nacional como Pequeno (e incompleto) Dicionário de Baianês para os não chegados. Lariú lança o Dicionário de Baianês em Salvador (Foto: Divulgação) “Na infância, todo final de semana a gente ligava para os avós e primos deles, no Rio, e uma vez uma das crianças me falou: ‘painho, por que eles falam errado?’ E aí eu fui explicar que há palavras que eles usam lá que nós não usamos aqui”, comenta Lariú, antes de citar que foi o caminho de volta - as palavras que usamos aqui, e não usam lá - que acabou sendo o trajeto de ida ao Dicionário.

“A partir daí, eu comecei a anotar as palavras, e isso virou paranoia lá pelo final dos anos 80. Eu já andava na rua ligado! Ouvia uma expressão e anotava num talão de cheques que tenho até hoje”, diz, mencionando uma das relíquias que dona Janete, sua “mulher atual e definitiva”, como afirma, guarda. Trata-se de uma espécie de memorial da obra, com fotos, anotações, as primeiras ‘bonecas’ (matrizes impressas do projeto de livro) etc. Anotação em talão de cheque era uma das técnicas utilizadas na pesquisa pelas ruas (Foto: Divulgação)  Feita a longa coleta de vocábulos e expressões - vindas das paletadas pelas ruas de Salvador, dos ônibus, das filas, da boca do povo -, o livro ainda demorou um bom tempo para ir para o prelo, mas essa parte da história já é mais conhecida. 

Constam apoios e conselhos empolgados que vão do jornalista Fernando Vita ao historiador Cid Teixeira, dos publicitários Carlos Sarno, Fernando Passos e Carlos Verçosa ao saudoso cartunista Lage (dono das ilustrações da obra).

O Dicionário de Baianês finalmente saiu, quase 20 anos depois dos babas no Japão, em dezembro de 1991, e virou além de uma representação do modo de viver e levar a vida de um povo, uma forma de rir e até de souvenir: a Livraria do Aeroporto é a que mais vendeu, normalmente para turistas, nessas três décadas de sucesso. Deve voltar a vender ainda mais, agora que uma edição revista e ampliada foi lançada na última quarta-feira (8), no Sesi Rio Vermelho. Listagem de alguns dos primeiros verbetes que aparecem na edição inicial do livro (Foto: Divulgação) Não pude prestigiar, posto que de plantão, mas me propus a desenrolar essa homenagem como forma de retribuir um apoio que Lariú me deu lá em 2004, e que ele já nem lembrava. Eu, menino todo, recém-saído da escola, recém-nascido como contista, escrevia uns livretos mal-amanhados, xerocados, denominado Raiai! - Histórias do Cotidiano de Salvador. Lariú foi um dos primeiros a comprar, numa banca, e um dos únicos a apoiar este colunista que tinha pouca ou nenhuma auto-estima para acreditar que podia alcançar grandes públicos.

“Gabriel, pra você, cronista da Bahia e do baianês, um abraço de Nivaldo Lariú, nov/2004” foi um impulso para o Raiai! se estender até o quarto número, e me ajudou a abrir muitas portas que vieram dar neste salão nobre do Baianidades. 

O Raiai! custava R$ 1 e tinha uns seis contos e crônicas cada número; e o Dicionário de Baianês, “sorridente, rapaz”, custa R$ 20, tem cerca de 1.600 verbetes, e portanto sai muito mais em conta.