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João Gabriel Galdea
Publicado em 26 de fevereiro de 2023 às 05:01
Brasil, esfriai vossos pandeiros, afinal, é findo o Carnaval, e começou aquela parte chata que se estende até o Natal, com um ligeiro alento no São João. Os três grandes marcos temporais de todo bom baiano(a) não são as estações (até porque faz calor o ano inteiro), mas as três festas que fazem a gente se preparar de uma forma especial para celebrá-las. E a trilha sonora dessas datas possui um nome em comum: José de Assis Valente, compositor e protético soteropolitano que completa 65 anos de “adeus” no próximo dia 6.>
Sua morte – é triste dizer isso – foi resultado de muita persistência: tentou se matar cinco vezes, uma delas após se jogar do Morro do Corcovado, no Rio, salvo por um arbusto. Nessa não conseguiu, mas uma hora o projeto foi concluído com sucesso. Sua vida – também é triste contar – foi uma sucessão de desencontros, desarranjos e desilusões desde a mais tenra infância, embora sua obra tenha plena inspiração e lampejos de felicidade.>
São 155 sambas gravados pelas maiores vozes do Brasil, a exemplo de Carmen Miranda – só ela gravou 25 –, além das marchinhas, que marcaram um estilo próprio e pioneiro, como destaca o escritor baiano Gonçalo Junior, autor da biografia ‘Quem samba tem alegria - A vida e o tempo do compositor Assis Valente’ (Civilização Brasileira, 2014). >
“Assis participou do primeiro concurso de marchinhas juninas, em 1933, que ele ficou em sexto lugar com ‘Cai, Cai, Balão’, gravado maravilhosamente por Aurora Miranda com Francisco Alves. E o coro é formado por ninguém menos que Carmen Miranda, Mário Reis e o próprio Assis Valente, com Pixinguinha ao piano, arranjo deste. Você consegue imaginar esses monstros gravando uma música só, uma marchinha de São João?”, diz Gonçalo. Não consigo. >
Pai da melancolia do samba >
Foram as marchinhas, aliás, que primeiro tornaram Assis Valente um ás da música popular, mesmo quando os concursos eram para o período natalino. “Eram um modismo na época. Os concursos davam muito dinheiro e ele participava bastante, e o mercado fonográfico também pedia marchinhas. Só que Assis era melancólico, depressivo”, complementa, dando a pista da marca impressa por ele na maioria das canções.>
Está lá, por exemplo, no final da maior música de Natal já feita no Brasil, ‘Boas Festas’, quando diz: “Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem”, aquela que começa com “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”.>
Filho bastardo do herdeiro português Antônio Teodoro dos Santos com a empregada doméstica Maria Esteves, Assis teve uma infância conturbada, que se estendeu e perdurou durante toda a vida adulta.>
Apesar de, pessoalmente, ser triste e depressivo, quis o destino que tivesse o tino para cuidar de sorrisos. Primeiro, com canções como ‘Brasil Pandeiro’, regravada pelos Novos Baianos com estrondoso sucesso, avisando que chegara “a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor”, ou mesmo ‘Alegria’, que lembrava que a nossa gente “triste e amargurada inventou a batucada pra deixar de padecer”.>
Não bastava, e cuidou de fazer as pessoas sorrirem bem também de outra forma, atuando como protético.>
Lendas Até se tornar ajudante do padrinho dentista, fazendo próteses em seu começo de vida adulta, no Rio, foi longo e controverso o caminho percorrido por Assis Valente aqui na Bahia. Primeiro na saída de Salvador, ainda bebê, já que sua mãe acabou demitida por conta do relacionamento com o patrão - a versão de que ele é nascido em Santo Amaro é contestada por Gonçalo Junior.>
“Uma (meia) irmã dele me contou que Assis tinha nascido na Rua do Carro, no Campo da Pólvora, na casa da própria família branca, onde o pai dela engravidou a mãe de Assis. Por o menino ser um filho bastardo, a empregada foi mandada embora. Ele então foi levado pelo padrinho, que era um dentista, amigo do pai dele, branco, e que criou ele em Alagoinhas. Esse mesmo dentista que vai acolher ele no Rio”, detalha Gonçalo, que teve contato com diversas fontes primárias em seu trabalho para reconstruir o passado do compositor.>
O biógrafo também questiona outras versões ultra disseminadas sobre o compositor: "Na Bahia, tentou-se criar uma biografia de Valente de menino prodígio, que declamava versos inteiros com pouca idade. Há muitos mitos. O rapto de Assis [quando criança] é lenda urbana, assim como a história do circo [com o qual teria fugido], ou dele ser homossexual. Tem muita história inventada".>
Vindas e idas>
Já mais moço, Assis Valente volta a Salvador, e passa a conviver com o pai por um tempo, até Teodoro descobrir que o rapaz estava usando maconha. “Isso foi em 1927, o que teria levado o pai dele a expulsá-lo de casa. Aí ele vai para o Rio tentar ser cartunista. Ao chegar para procurar o padrinho, e tentar arranjar um emprego, é atropelado, vai pro hospital, fica lá sem memória durante um tempo”, pois tragédia pouca é bobagem.>
A memória volta, o sucesso começa e sobe para a cabeça. Segundo Gonçalo Junior, o compositor passa a levar uma vida paralela, se tornando um inveterado consumidor de cocaína. É esse vício que destrói seu casamento e suga todo o dinheiro que ganhava como um dos grandes nomes da composição daquele tempo, só rivalizando com Noel Rosa, que o antagonizava com composições bem humoradas. >
Risonho em fotos, o bom humor de Assis Valente estava apenas na superfície. Na vez em que tentou suicidar, pulando do Corcovado, deixou bilhetes se explicando, não queria ninguém sentindo culpa. Na quinta e última tentativa, sentado numa praça, talvez de camisa listrada, conseguiu separar-se da vida, mas não da história nem da memória afetiva de quem o ouve e canta nos momentos mais felizes do ano, todo ano, todo ano.>