Comunidade científica repudia nota técnica do Ministério da Saúde 

Especialistas reforçam importância da vacina contra covid-19 e ineficácia da cloroquina no tratamento da doença

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  • Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: divulgação

A matéria foi atualizada às 12h23 para incluir o posicionamento do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb).

Após a publicação da nota técnica nº2/2022, da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, a comunidade científica da Bahia e do Brasil repudiou veementemente o documento divulgado nesta sexta-feira (21). A nota da pasta indica “efetividade” e “segurança” para o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, e, ao mesmo tempo, nega os benefícios das vacinas. Especialistas baianos avaliam a declaração como um “desserviço”, “inadmissível”, “imprecisa” e contrária às evidências da ciência. 

A nota foi assinada apenas pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério, Hélio Angotti Neto. Ela cita 13 estudos “controlados e randomizados” favoráveis à hidroxicloroquina, “com efeito médio de redução de risco relativo de 26% nas hospitalizações". Já para a falta de eficácia das vacinas, o embasamento se deu com 18 ensaios não finalizados, dos quais, oito ainda estão em fase de recrutamento, nove ainda estão sem concluir a fase de seguimento e um está finalizado, mas em fase de dados insuficientes para a avaliação de segurança.    Nota técnica diz que vacinas não são eficazes, enquanto hidroxicloroquina sim (Foto: Reprodução/Ministério da Saúde) Para a infectologista Ceuci Nunes, diretora do Instituto Couto Maia, hospital referência no tratamento de doenças infec-contagiosas na América Latina, a nota é “tão absurda” que chega a ser “estarrecedor” comentá-la. “Ela é tudo de ruim, porque, primeiro, desacredita em um órgão importantíssimo, que é o Conitec do SUS. Um ideológico, sem rigor científico nenhum, compara vacina com cloroquina, o que é um absurdo. É um desserviço o que o Ministério tem prestado ao Brasil nesta pandemia”, opina Ceuci.  

Segundo a especialista, somente o Ministério da Saúde ainda defende a cloroquina. “A cloroquina já ficou desmoralizada. A literatura já está farta de evidências de que ela não serve para tratamento de covid. A vacina que tem salvado milhões de pessoas e conseguido modificar a cena da pandemia no Brasil. Ela que diminuiu os casos graves e as hospitalizações”, explica Ceuci Nunes.  

Ao avaliar o cenário epidemiológico da Bahia, é possível observar a diminuição dos casos do vírus e número de mortes desde o avanço da vacinação no estado. No primeiro semestre de 2021, apenas 8,7 milhões de vacinas tinham sido aplicadas. Em junho, o número diário de casos confirmados era entre 4 e 6 mil. Em julho, isso começou a diminuir e, em agosto, reduziu para pouco mais de 1 mil casos diários. De setembro a novembro de 2021, após o início da vacinação, ficou em torno de 500 casos.

Já o número de mortes, em junho de 2021, era mais de 100, diariamente. Em julho, esses óbitos reduziram para 43; em agosto, 30; em setembro, 17; e em outubro e novembro, variou de 5 a 10. Ou seja, a quantidade de baianos que morre por covid-19 reduziu mais de seis vezes nos últimos seis meses. O número de casos teve queda de 92,57%.  

Enquanto isso, o número de vacinas aplicadas triplicou, no mesmo período: agora, são mais de 27 milhões. Do total de habitantes na Bahia, 73,7% estão com a primeira dose e 62,1% com a segunda. Em dezembro e janeiro, o número de caso voltou ao patamar de 4 a 6 mil por dia por conta do avanço da variante ômicron. O número de mortes diárias está entre 15 e 20. Além disso, a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) já informou que, em janeiro, 80% dos internamentos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) são de pessoas que não tomaram o imunizante. 

O imunologista Celso Sant’Ana, professor da UniFTC, esclarece que as vacinas têm o papel de reduzir o contágio da doença e faz com que as pessoas tenham sintomas mais leves caso sejam infectadas. “Não se deveria ter dúvida em relação à vacina de qualquer tipo. Elas são eficazes há anos e já salvaram muitas vidas. Se não fossem elas, não teríamos erradicado a poliomielite e o sarampo no Brasil”, argumenta.  

Sant’Ana é completamente contra o conteúdo da nota técnica. “As vacinas reforçam a imunidade da pessoa contra o vírus, enquanto as drogas como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina trabalham no sentido de impedir a multiplicação do vírus. Porém, não existe, até hoje, medicamentos que os matem. E não tem como comparar a eficiência de uma vacina com qualquer outra droga”, adiciona. Ele ainda cita efeitos colaterais das drogas em pacientes hepáticos e cardíacos.  

Celso diz que cada parágrafo das 45 páginas da nota técnica pode ser refutado. “Ela se baseia em premissas altamente inconsistentes, com erro de metodologia de análise. Eles foram muito rigorosos para analisar trabalhos contra a vacina e muito generosos para analisar trabalhos a favor da cloroquina. A nota não gera consequências legais e não tem caráter obrigatório, porém gera um impacto negativo desnecessário”, analisa. 

Abaixo assinado Um abaixo assinado foi criado, neste sábado (22), por docentes, profissionais de saúde e pesquisadores do Brasil emitindo posição contrária à nota que favorce a cloroquina. O texto pede providências ao Supremo Tribunal Federal (STF), Ministério Público (MP), Senado e ao Ministério da Saúde. Em menos de 24 horas após sua criação, o documento já tem mais de 40 mil assinaturas.  Os autores da carta se dizem "perplexos” pela nota rejeitar formas de tratamento recomendadas por médicos com experiência no tema, em favor de métodos não validados. “Em nosso entender, é um exemplo primoroso de desinformação em saúde”, criticam os cientistas.  

A nota ainda recusa propostas elaboradas por um grupo de pesquisadores convocados pelo próprio Ministério da Saúde, que fazem parte da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), entidade que emite recomendações no tratamento de doenças. Para os pesquisadores, foi criada uma situação sem precedentes no país. 

“Causa enorme preocupação o fato de que as rédeas do Ministério estejam sob a posse da ideologia, da desinformação e, principalmente, da ignorância. O comportamento do Ministério da Saúde transgride não somente os princípios da boa Ciência, mas avança a passos largos para consolidar a prática sistemática de destruição de todo um sistema de saúde”, acrescenta o abaixo-assinado.  

O que diz a OMS  A Organização Mundial da Saúde (OMS) também já se posicionou sobre a ineficácia da cloroquina para tratar o novo coronavírus logo no início da pandemia. Em um documento publicado em maio de 2020, a OMS disse que “os atuais indícios científicos não são conclusivos quanto à utilidade e aos efeitos secundários da hidroxicloroquina nas doses recomendadas para gestão da covid-19". 

Ao mesmo tempo, a organização defende a vacinação para o controle da doença: “As vacinas mostraram um alto nível de eficácia em todas as populações e têm sido consideradas seguras e eficazes em pessoas com várias condições médicas subjacentes”, como grávidas, pessoas com diabetes, hipertensão, idosos, crianças e outros grupos “de risco”. 

Órgãos oficiais  Até a noite deste domingo (23), a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) não quis se posicionar sobre o tema, só disse que é “lamentável, nos dias atuais, esse posicionamento do Ministério da Saúde”. A Sesab pediu que a reportagem do CORREIO procurasse o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que não respondeu até a esta data.  

Nas redes sociais, o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), anunciou que vai acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar o incentivo ao medicamento. Diversas outras entidades repudiariam a nota técnica, como a Frente pela Vida, organização formada por profissionais da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Médicos pela Democracia, e a Sociedade Brasileira de Virologia. 

O Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) ratifica que a vacinação contra a covid-19 é "fundamental" no combate ao coronavírus e que as vacinas têm um papel histórico na erradicação de doenças. "A vacinação sistemática tem dado provas concretas na redução da mortalidade e redução de complicações nos já imunizados", afirma o Cremeb. 

O conselho também diz que o médico tem "a autonomia e a responsabilidade de propor e prescrever tratamentos que sejam seguros e que tenham respaldo nas melhores evidências científicas, sempre em consonância com o consentimento do  paciente".

Secretário municipal da saúde de Salvador, Leo Prates cumpre agenda no interior e informou que não conseguiria avaliar a nota técnica do Ministério da Saúde até a noite deste domingo (23). O Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS), a Associação Bahiana de Medicina (ABM) e o Ministério da Saúde foram procurados, mas não enviaram resposta.   

Leia a nota técnica na íntegra: