Confissões de adolescente

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  • Paulo Sales

Publicado em 17 de maio de 2021 às 05:02

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Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da adolescência estão diretamente relacionadas aos estertores da ditadura militar. Sou testemunha de como a barbárie institucionalizada foi embora mais ou menos como começou: em forma de farsa e como prenúncio de tempos difíceis.

Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas.

Um ano antes, tinha escrito uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica e meio ingênua enaltecia a capacidade do general Figueiredo de conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética, com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, inspirada obviamente na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado.

Fui alçado às incertezas da adolescência num ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e ouvindo notícias esparsas sobre os governos Geisel, Carter e Brejnev. Homens sisudos, sem nenhum carisma. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto.

A ditadura enfim acabou e aos 15 anos eu comecei a descortinar o mundo real: o plano Cruzado, o rock nacional, a praia onipresente, o horror à matemática, as mulheres lindas que estampavam as capas da Playboy, as garotas não tão lindas do colégio, o estrago causado pela aids começando a se esboçar por estas bandas. Havia certa permissividade, após décadas de caretice e repressão, que se traduzia em costumes mais avançados. Muito novo, ia aos shows nos circos Relâmpago e Troca de Segredos e me espantava com aqueles tipos usando piercings, cabelos coloridos e roupas de couro.

Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas terríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara.

Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens. Já Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Legião Urbana, RPM, Engenheiros do Hawaii. Adorava. Era uma forma de pertencimento, de fazer parte de uma geração. Usava camisas com estampa de Che Guevara e escrevia poemas engajados horrorosos.

Tímido e sonhador, eu era só um filho da revolução, um burguês sem religião, para usar os versos de Geração Coca-Cola. O futuro de uma nação sem futuro. Menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que esse mundo me oferecia.