Conheça a distopia afrofuturista criada pela baiana Kione Ayo

Preta, bacharelanda em Física, artista do Engenho Velho de Brotas apresenta a HQ Para Todos Os Tipos de Vermes

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 10 de janeiro de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo Pessoal
Ilustração de Kione Ayo

Para Todos Os Tipos de Vermes é um livro que mistura complexidade, beleza e dá motivos para se inspirar. Lançado em junho de 2020, graças ao projeto Narrativas Periféricas, numa parceria entre a Editora Mino, Perifacon e Chiaroscuro Estúdio, a história em quadrinhos apresenta dois primos que começam a enxergar a realidade opressiva em que vivem, depois da morte da melhor amiga deles: um universo pós-apocalíptico, onde seres humanos vivem dentro de vermes gigantes marítimos porque a superfície foi completamente destruída.

A trama é bonita e com desenhos sensíveis, inteligentes, que dão complexidade e profundidade a pessoas negras, principalmente mulheres: intelectualizadas, legais, inspiradoras. Tudo isso é fruto do trabalho de uma quadrinista nascida e criada no Engenho Velho de Brotas, filha de pais físicos - de quem herdou a vontade de entender o universo e de contar e criar novas narrativas sobre eles. É tanto que também ela cursa bacharelado em Física na Universidade de São Paulo (USP). Seu nome? Kione Ayo. Capa do HQ Para Todos Os Tipos de Vermes (Foto: Divulgação) Os pais de Kione, que tem 24 anos, foram seus primeiros incentivadores. Modesta, ela diz que desenhava como qualquer criança, mas a animação dos pais para elogiar o que ela e o irmão mais novo faziam deixaram ali, no coração da garota, a vontade de continuar. Depois dos incentivos, vieram as revistinhas compradas em banca de revista para aprender a desenhar e os animes que assistia na televisão.

"Comecei mesmo por conta dos animes que via na TV. Tentava fazer igual, achava o traço muito bonito. Na minha casa tinha um DVD de Sakura Card Captors e eu nem assisti ao anime, era um OVA. Era bem legal e tentava fazer igual. Tinha Pokemón, Full Metal Alchemist, Hunter x Hunter, que passava na TV e nem lembro qual era o canal. Eu ficava lá, desenhando os personagens. Tenho um caderno cheio de personagem e pokemonzinho", conta Kione.

Kione é um nome de origem africano que significa 'alguém vindo de lugar nenhum' e Ayo significa 'felicidade' em iorubá. A junção dos dois termos é algo que agrada muito à quadrinista, que, pela proximidade com a física, gosta do que  chama de 'Hard Sci Fi', uma ficção científica com embasamento físico, químico e/ou biológico. Além do seu quadrinho autoral, Kione também participou do projeto batizado como Nitidez, que tem roteiro de Felipe Castilho e todo projeto gráfico feito por ela. 

"Eu gosto da ideia de saber como as coisas funcionam. É um quebra-cabeças descobrir sobre aqueles mundos e quando fazem uma ficção científica assim é divertido", explica. Capa de Nitidez (Foto: Divulgação) Kione Ayo também gosta de colocar relações raciais, sociais e de gênero dentro de seu trabalho, ainda que de forma discreta, como, por exemplo, fazer personagens que são mulheres intelectuais e que são ótimas em áreas historicamente dominadas por homens brancos, como as exatas."As narrativas da sociedade influenciam a vida das pessoas. Quando pensam numa pessoa boa de exatas não pensam numa mulher negra. Não acham natural a ideia de termos proficiência nessa área. Meus personagens são inteligentes, legais, criam identificação pelo estilo, e isso também atrai e pode inspirar as pessoas. Qualquer menina preta se inspirar num personagem ali já é uma vitória pra mim", pondera Kione. É esse tipo de universo que ela traz em Para Todos os Vermes. "Ele se passa num futuro pós-apocalíptico, onde as pessoas vivem dentro de vermes gigantes no fundo do oceano porque a superfície foi devastada pela depredação do meio-ambiente. Os persoagens vivem numa sociedade distópica, autoritária e controladora, racialmente dividida e com classes muito evidentes. É bem a cara do Brasil, não podia ser diferente", afirma. 

Na história, a classe mais oprimida vive nos intestinos dos vermes e, para sobreviver, precisou entrar em simbiose com um fungo e ter seus intestinos expostos. São os chamados intestinais, pessoas que acabam sendo enfraquecidas e reprimidas por conta das condições de vida que têm. Página de Para Todos Os Tipos De Vermes, cedida pela autora (Foto: Acervo Pessoal) Quem vive fora dos intestinos são os chamados lipídicos, classe mais abastada e que incentiva a opressão dos intestinais com discursos de ódio passado por gerações, mas que já não representam a realidade daquele tempo. A trama contada nas 56 páginas da HQ tem início após a morte de uma mulher intestinal chamada Agurah, quando seus dois amigos e protegidos, os primos Ékteon e Anokye, decidem sair do intestino do verme e tentar chegar aos lipídicos.

Ékteon é uma garota esperta, que tem afinidade com computadores. Ela entra na rede dos lipídicos e consegue contato com uma pessoa misteriosa, que está do outro lado e diz querer ajudá-los.

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O livro está disponível na Amazon e custa R$ 28,90. É uma história que reúne distopia, afrofuturismo e traz uma série de reflexões sobre a nossa própria realidade. Tudo assinado com a potência criativa de uma soteropolitana, do Engenho Velho de Brotas, que vive, trabalha e estuda para construir novas narrativas sobre pessoas negras e incentivar suas próprias potências.