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Da Redação
Publicado em 2 de junho de 2019 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Um menino de 5 anos chega ao colégio reclamando. Vem, com a mãe, pela margem da BR-324 até chegar à Escola Reitor Miguel Calmon, o Sesi do Retiro. Mas não reclama da estrada, ou da escola. É preciso um olhar atento às delicadezas e acostumado aos percalços da vida para resolver a questão. A mãe e o menino moram longe e atropelam vontades para não se atrasarem. Até mesmo a de beber água. É quando aquele olhar atento aparece na ação da diretora da escola, Eleonice Caldas.>
Ela começa a pausar o menino e ordenar que este vá ao bebedouro. A partir de então, o mau humor se converte em leveza e disposição. A questão era a sede. Aparentemente simples, mas que precisaria de experiência, dedicação e perspicácia para ser resolvida.>
Com 51 anos, Eleonice Caldas está há 30 trabalhando no Sesi. Mas ela tem o lugar na cabeça desde que tinha 9 anos. Filha de industriário, foi à escola com o pai para uma festa da empresa. Na memória, ficou o deslumbre pelo local. “Eu lembro de dizer: que escola linda. Senti muita vontade de estudar ali.”>
À época morando no Largo do Tanque, a logística era improvável, e o desejo não se realizou. Eleonice continuou sua formação em escolas públicas, concluiu o magistério e, com 20 anos, prestou um concurso para ser professora da Escola Reitor Miguel Calmon. Passou. Mas não percebeu imediatamente que o lugar do novo emprego era a mesma escola que roubara seu fôlego, na infância. A Miguel Calmon é o Sesi. O que ela percebia, com clareza, era o sentido das suas escolhas:“Decidi ser professora com 7 anos. O que aprendia na escola, ensinava para meus 11 irmãos, todos mais novos. Usava a base da cadeira e uma ponta de giz. Nunca duvidei dessa vocação.”Em 1989, assumiu a vaga conquistada no concurso e virou professora da Educação Infantil na Miguel Calmon. Quinze anos depois, em 2004, passou para a Coordenação Pedagógica, e só então ligou pontos que estavam distraídos em sua trajetória: “Em um momento que os estudantes transitavam da ala A para a B, a memória voltou de repente. Reconheci o portão e árvore que tinha visto com 9 anos, na festa do meu pai. Fiquei muito, muito feliz.”>
Hoje, Eleonice Caldas é a diretora da educação regular do Sesi, que engloba ensino fundamental e médio. Sob a batuta dela, estão 84 funcionários. E, ainda mais importante, 1.800 estudantes. Eleonice se esforça para ofertar a cada um a chance de estudar, investigar e descobrir algo que também lhes roube o fôlego. Eleonice Caldas dirige 84 funcionários e 1.800 estudantes (Foto: Betto Jr.) Histórico A escola Reitor Miguel Calmon, administrada pelo Serviço Social da Indústria (Sesi), e localizada no bairro do Retiro, nasceu para atender aos filhos de industriários que trabalhavam na região. Com o tempo, as indústrias se mudaram para Camaçari; mas a escola permaneceu. Hoje, oferece do 6º ano ao 3º ano do ensino médio.>
Em uma pesquisa realizada pelo Centro de Políticas Públicas do Insper, em 2018, os resultados dos alunos do Sesi do 5º ano são similares aos das instituições de ensino particulares – que possuem as pontuações mais altas nos testes aplicados no Brasil. Ainda que a escolaridade das mães e a renda familiar sejam mais próximas da rede pública de ensino. É a esta instituição que Eleonice dedica, no mínimo, oito horas por dia.>
Para completar, Eleonice trabalha na Escola Municipal São Miguel, em Mata Escura. Ali, permanece professora, educando jovens e adultos. “É mágico ver pessoas aprendendo, escrevendo, depois de passarem tanto tempo sem ler.” Mágica, por sinal, é como caracteriza as consequências da educação. “Transforma tudo o que toca. O lar, o entorno, a vida dos estudantes; desperta sonhos e os torna possível.” O grau de importância, no entanto, exige comprometimento e esforço equivalentes.>
No Sesi, um dos destaques de Eleonice, enquanto diretora da instituição, é para a relação da escola com a comunidade do Retiro. Localizado entre a BR 324 e os bairros de São Caetano, Cabula e IAPI, o Retiro tem um histórico violento, marcado pelo tráfico de drogas. Segundo o último boletim da SSP-BA, a área que o bairro integra é a quarta mais violenta de Salvador - a cidade é partilhada em dezesseis áreas. A área do Retiro também é a terceira colocada em números de homicídios dolosos, com 124 registros em 2018.“Não vamos resolver a violência, nem daqui nem de muitos dos bairros de onde os alunos vem. Mas integrar os pais e a população do entorno na realidade do Sesi, muitas vezes a partir de iniciativas dos estudantes, contribui para um ambiente melhor.”Invariavelmente, essas iniciativas são inspiradas no farto currículo educacional: ciências aplicadas, tecnologia, robótica; incentivos para se dedicar a esportes e condições de desenvolver projetos artísticos. Desde 2012, a escola sobe ao pódio do Torneio Sesi de Robótica; em 2019, o colégio conquistou cinco medalhas de ouro no F1 Nas Escolas, torneio que simula uma corrida de Fórmula 1 do início ao fim. Além disso, o Sesi do Retiro já foi campeão da Olimpíada Brasileira de Robótica e recebeu menções honrosas das Olimpíadas de Química e Biologia.>
Mas os grandes resultados também dependem dos pequenos gestos. Eleonice ressalta que, para gerir uma equipe tão grande e manter acesa a chama do interesse nos estudantes, são fundamentais a gentileza e a escuta sensível - a firmeza na hora de liderar, decidir e cobrar condutas são reforçadas por aquelas.>
As recompensas, por sua vez, também chegam em atitudes pontuais. Em uma delas, a diretora recorda de João; um aluno que, maior, na sua formatura, fez uma surpresa para Eleonice: a elegeu como a pessoa que entraria com ele na cerimônia. Reconhecimento que se dá a quem de fato marca uma vida. João, que preparou a homenagem, fez toda sua formação sob os cuidados de Eleonice. Aos cinco anos, parou de reclamar para ir à escola. Ele vinha andando pela BR-324 e chegava com muita sede. Até que dois olhos atentos enxergaram a situação. >
* Com supervisão da subeditora Tharsila Prates>