Conheça Cacica Cátia, indígena ameaçada de morte que lidera luta para demarcar aldeia

História dela é marcada por resistência no sul da Bahia; ameaças começaram há 15 anos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 4 de julho de 2021 às 05:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Cacica Cátia tem uma característica que aprimorou por questão de sobrevivência - a habilidade de não se acostumar. Não se curva à morte, às perseguições, nem ao fogo que já atearam em casas da Aldeia Patiburi, no Território Tupinambá de Belmonte, extremo-sul da Bahia. A vida, aprendeu ela, pede que o absurdo não seja tomado por rotina. 

Há 15 anos, a história quer conformar Maria do Carmo Querino, 51 anos, à brutalidade. “Luto porque não me acostumo”, diz Cátia, nome escolhido por seu pai, mas que, no registro civil, foi oficialmente substituído por Maria do Carmo, após uma promessa da avó dela a Nossa Senhora do Carmo. A cacica personifica a luta da Aldeia Patiburi, à espera por uma demarcação de terra tingida de sangue.

Em 2005, uma liderança indígena desapareceu no Rio Jequitinhonha, que margeia a aldeia. Nove anos depois, o filho dela foi morto em um atropelamento nunca elucidado. Em fevereiro de 2019, seu enteado desapareceu. “Nessa trajetória, são três desaparecimentos nunca esclarecidos. É muito difícil falar disso até hoje”, conta.Na ocasião do sumiço do jovem Adenilton, em março de 2005, a aldeia estava em festa. No dia 23 de dezembro de 2004, tinham sido expulsos do território e agora celebravam o retorno. Um fazendeiro tinha conseguido uma reintegração de posse, mas a decisão judicial foi revertida. Adenilton foi um dos primeiros a voltar. A última notícia que se tem dele é de uma ida ao rio. 

Cacica Cátia é uma mulher forte como “os Tupinambás” e “apegada à espiritualidade”, ela diz. Quando o sol nasce, a senhora agradece por estar viva. Quem tem a habilidade de não se acostumar sabe dos perigos que podem se impor. “E meus ameaçadores são cruéis”. 

Desde 2018, ela integra o Programa Federal de Proteção de Defensores de Direitos Humanos e só sai da Aldeia Patiburi com escolta policial. Criada na liberdade, é estranho ser amparada por desconhecidos. “Talvez estranho nem seja a palavra. Me sinto impotente”. 

De volta à aldeia Conforme as grandes fazendas avançaram na região, cresceu também a pressão dos latifundiários sobre o povo indígena e, pessoalmente, sobre Cátia, que assumiu o cacicado em 2005, e é uma das 11 cacicas baianas. Até os anos 2000, as famílias que residem na Patiburi viviam dispersas por fazendas. A família dela era uma dessas partes do todo, apartado ao longo do tempo desde a invasão portuguesa. 

De volta à Patiburi, Cátia não se acostumou a ver homens cercarem a aldeia em sinal de ameaça, até março do ano passado, quando a energia elétrica chegou. A noite transformava em breu a comunidade e com ela apareciam invasores que queriam, pela força do medo, expulsá-los da região mais uma vez.“Nosso território é muito rico. São nossas riquezas que eles querem”, comenta a cacica.A possibilidade de aprovação da PL 490 mudou o clima da aldeia. O projeto de lei prevê que serão terras indígenas somente aquelas ocupadas ou usadas produtivamente pela comunidade em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

O processo administrativo de identificação e delimitação da Patiburi, primeiro passo para a demarcação, foi finalizado em 2019. O temor é que a PL adie o reconhecimento da terra.

Por uma história escrita Cacica Cátia cresceu como agricultora na fazenda onde vivia com os pais, Maria e José, e quatro irmãos. Era por meio das memórias do pai que Cátia, ainda criança, se transportava para a Aldeia Patiburi. Os indígenas da Patiburi se dispersaram, em diferentes épocas, sem perder contato uns com os outros, o que possibilitou o retorno.

Mesmo sem ter passado a juventude na Aldeia, Cacica Cátia se sente como se nunca a tivesse deixado.

Hoje, ela vê o pai, de 82 anos, envelhecer como ancião da Patiburi, enquanto assiste os seis filhos e oito netos se descobrirem no território. É a ela que todos recorrem quando precisam de conselhos. Sem perder a serenidade da voz, ela se dispõe àquelas pessoas, ainda que a rotina seja mais dura. Em 2015, a Cacica recebeu as primeiras ameaças de morte.“Não sabia que seria tão difícil, mas imaginava que não seria fácil”, diz, sobre ser cacica.Quando pode, é uma das primeiras a acordar na aldeia e ir pescar na Lagoa Timiquim, para desanuviar a cabeça. Seu pai é um exímio pescador, tanto quanto eram sua mãe e suas avós.

O sinal de telefone falha na aldeia conforme o tempo no céu. Se a chuva cai, acompanhada do vento, a comunicação fica complicada. Ainda assim, ela se mantém próxima do celular, a única ferramenta que tem quando não consegue participar de protestos, por exemplo.

Como acredita na força da palavra escrita, ela orienta os jovens a escrever muito, o máximo, sobre a aldeia. A cacica é formada professora pela segunda turma de Magistério Indígena da Bahia, de 2011, e, apesar de não atuar mais em sala de aula, está próxima da Escola Indígena Patiburi, onde acredita que nasce parte da revolução. “Somos bons de oralidade, não de escrita”. Para quem tem a habilidade de não se acostumar, a escrita também é instrumento de luta.