Conheça Cris, a 'pirigospel' que fez de casarão point do Centro

Baiana foi de vendedora de Yakult a proprietária do Mirante Tropical, espaço que só funciona sob reserva e está lotado até setembro

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de agosto de 2021 às 05:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO
. por Foto: Marina Silva/CORREIO

“Adão e Eva fizeram e a gente paga”, é o que Crislene Oliveira, 41 anos, diz diante das adversidades da vida. Cris já sofreu nove abortos espontâneos, perdeu uma filha quando ela tinha 16 dias de vida, apanhou da polícia e foi chamada de louca. Adão e Eva fizeram e a gente paga, mas Cris decidiu quitar a dívida com inovação.

A casa de muro grafitado da Rua Visconde de Mauá, onde Cris mora, é um dos símbolos dessa ideia dela de se metamorfosear a cada dia. Na laje desta residência, com vista para a Baía de Todos os Santos, funciona, desde 2019, o Mirante Tropical, que está com a agenda lotada até setembro. Não há garçons e os clientes servem a si próprios. Cris aparece apenas para colocar os pratos na mesa e, depois, tchau. 

“Não chamo de bar, nem de restaurante”, afirma. Mas ela também não sabe como chamar este espaço, que só funciona sob agendamento prévio. Talvez “sua casa por 24horas” ou “um lugar para casais reviverem o amor” ou “casa para tirar um descanso e estudar”. Talvez um pouco mais. Foto: Marina Silva/CORREIO Na tarde seguinte à visita da reportagem, aconteceu um culto evangélica na laje. Na semana anterior, um casal comemorou 16 anos de casamento. “Cris está com agenda mais lotada que Ivete Sangalo antes da pandemia”, brincou um cliente. 

Evangélica, Cris se denomina “pirigospel” e se a casa dela é tudo ao mesmo tempo, ela não é diferente. O corpo, ela emprestou para o único filho, Abraão, aprender a tatuar e tem 22 tatuagens, do pescoço à perna. A roupa e o modo de falar estão longe do que se espera da cristã mais ortodoxa que Cris não quer ser.“A bíblia diz que no céu haverá grandes surpresas”, fala.A vida dela, por exemplo, é só surpresa. Ela foi vendedora de Yakult por 18 anos, agora é empresária. Foi menina recatada criada na rédea curta pela mãe, no bairro de Periperi, agora é “pirigospel”, cozinheira, cantora e decoradora. Há quem considere Cris "show-woman", uma mulher que mistura tudo. 

Cris não se formou para exercer nenhuma dessas funções. Fez e, então, aprendeu. “Aos 8 anos, aprendi a fazer escultura na praia. Vi uma e comecei a fazer igual”, conta. A arte da decoração, ela conheceu mais a fundo no ano passado, quando começou a coletar móveis abandonados nas ruas para decorar o mirante, onde há peças de madeira do século passado, cabeceira de cama adaptada como cadeira, balanço.

[[galeria]]

Já a alquimia da cozinha ela aprendeu com a madrinha Lucy, que a ensinou que “o segredo, minha filha, está nos temperos”. Cantar é um talento que ela apresenta em noites inspiradas no Mirante.

A dona do Mirante faz questão de fazer conforme aprendeu. Se um cliente pede para ela cozinhar um peixe vermelho para recebê-lo e ela sabe que a tainha ficará mais gostosa, ela aposta na segunda opção, sem dúvida. Esse caso, da troca do vermelho pela tainha, já aconteceu e o cliente até se zangou quando Cris negou o pedido dele.“Agora só vem aqui e pede a tainha, que pega mais sabor que o vermelho, mais famoso”, gaba-se.Antes de ir ao mirante, o cliente precisa dizer a Cris o que quer comer e beber. O que mais saem são os frutos do mar, como peixe e camarão. “Se a pessoa diz que não pode pagar por tal cerveja, eu vou lá e compro outra”, diz.

A reserva é gratuita e, por dia, Cris recebe no máximo dois grupos, sempre em horário diferentes, das 14h às 22h. Mas esse horário nunca é fixo e Cris tem ajuda da irmã para pôr tudo em ordem. “Pensei em atender só com reserva na pandemia, pensando mais nos idosos mesmo, nas crianças”, conta.

De vendedora de Yakult a anfitriã  Cris chegou à Ladeira da Preguiça em 2013, onde o namorado dela à época morava. Nessa época, ela começou a vender comidas e bebidas. Em cinco anos, Cris mudou de casa cinco vezes, até engravidar de gêmeas, em 2018. 

Uma das bebês, Cris perdeu ainda na barriga. A outra neném, Esther, faleceu duas semanas depois de nascer. Um relógio posto numa das paredes do Mirante está preso no horário 9:15, quando Esther faleceu, vítima de uma bactéria contraída no hospital, em julho de 2019. 

O lugar que Cris mora e mantém o mirante foi cedido em 2018, em um contrato renovado anualmente de comodato, também conhecido como empréstimo para uso. A casa é vizinha à Ladeira da Preguiça, mas faz parte do bairro do Dois de Julho. Até chegar lá, Cris participou de manifestações pela ocupação de espaços abandonados e foi nelas que apanhou de fardados. Foram “dívidas” que a trouxeram até aqui. 

Instalada no novo endereço, Cris recebeu a oferta de uma cervejaria para vender, no Mirante, bebidas no “Banho de Mar à Fantasia”, evento que acontece na Ladeira no domingo anterior ao Carnaval de Salvador. Foi uma virada na vida de Cris, que manteve, no entanto, a mesma rotina. É comum vê-la, descalça, com outros moradores e pessoas em situação de rua."Esther [a filha falecida de Crislene] me ensinou muitas coisas". De frente para o mar, Cris diz que nunca gostou de praia, o que atesta mais uma vez que ela não é o que parece. Todos que a vêm enxergam uma mulher desinibida, mas ela diz ser tímida, tomada “por louca por muita gente”. “O que acho bom, porque me dá uma capa de invisível”, conclui Cris, que sabe que está para tudo, menos para invisível.