Contaminação por chumbo impede gerações de santamarenses de trabalhar e até namorar

Com transmissão em família, novos contaminados pelo chumbo enfrentam estigmas; ex-funcionários têm dificuldades para encontrar trabalho e até para amar

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 6 de outubro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

O macacão dos funcionários da antiga Cobrac talvez seja o símbolo maior da desgraça de chumbo que atingiu Santo Amaro. A imagem das fardas azuis sendo esfregadas pelas esposas e depois colocadas de molho com as roupas das crianças está bem viva na memória das famílias. Às vezes, as próprias crianças tomavam banho no tanque. “Ele chegava em casa com o macacão cinza, aquele cinza escuro de tanta escória. Eu lavava tudo na mesma bacia que dava banho nos meus filhos”, conta Tereza Alves Martins, 59 anos, no relato que mais se repetiu entre os personagens que entrevistamos.

Ali, no pó grudado nos macacões, estava somente a forma mais alegórica da herança bruta deixada pela escória dentro das famílias. A contaminação se dá de maneiras variadas, seja por via aéreas, ingestão de alimentos contaminados ou contato direto com o elemento. Independentemente delas, todas têm algo em comum: criam um estigma. Quem usava aquele macacão era (e ainda é) visto de forma diferente pelos demais. Porque uma coisa é ser exposto ao chumbo, como aconteceu com toda a população de 60 mil habitantes da cidade. A outra é ser ex-funcionário da Cobrac ou ser filho desses. Uma coisa é ser santamarense. A outra é estar contaminado, com sintomas estranhos, mutilações, ossos retorcidos e órgãos vitais afetados.

Transmitido de geração em geração, o chumbo de Santo Amaro parece que vai se perpetuando. Imagine uma família inteira contaminada? “Essa fábrica trouxe problemas para toda a minha família, porque, além do meu marido, dois de meus filhos sofrem com dores nas articulações. Um deles foi diagnosticado com lúpus, o outro fez exame e deu presença de chumbo no sangue. Os médicos sempre perguntavam a ligação da família com locais onde tinha presença do metal, sem sequer saberem a profissão de meu marido”, conta dona Tereza.

Alguns sintomas são claros e estigmatizam mesmo. Um deles é fraqueza nos músculos. Quando se fala de músculo, pode ser qualquer um. É aí que o chumbo é capaz de destruir até as relações amorosas. A impotência nos foi relatada por diversas vítimas. “Eu já saí da Cobrac impotente. Eu não tenho medo de falar, não! Saí bem doente e não conseguia ter relações”, admite José Gomes Ribeiro, o Seu Zeca, 77 anos, que trabalhou 15 anos na empresa. José Carlos RibeiroFoto: Arisson Marinho/CORREIO O pescador Ednelson Muniz da Cruz, 67 anos, disse que passou um período “sem conseguir namorar” por conta dos problemas de saúde causados pelo chumbo. “Com 36 anos de idade eu já tinha fraqueza nos nervos”, conta. Em 1993, quando a Cobrac fechou, a concentração de chumbo no sangue de Ednelson atingia 75 miligramas por litro. Fez todos os exames no  Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (Cesat). Mesmo com a comprovação, não conseguiu se aposentar. “Até hoje espero a indenização”.

Ednelson garante que conseguiu voltar a namorar após tratamento de saúde, se casou e vive da pesca na comunidade ribeirinha da Caieiras, mas volta e meia vai se tratar em Salvador. “Até nisso o chumbo é uma desgraça. As mulheres não querem se aproximar de ex-funcionários. É um estigma. Tem gente que não admite, mas é impotente. Imagine o trauma que uma desgraça dessa causa na vida das pessoas”, afirma  Adailson Pereira, o Pelé, presidente da Associação das Vítimas por Contaminação por Chumbo, Mercúrio, Cádmio e Outros Elementos Químicos do Estado da Bahia (Avicca). “Infelizmente, o problema do chumbo atravessa gerações. É uma herança maldita!”. Ednelson Muniz da CruzFoto: Mauro Akin Nassor/CORREIO Esposas e filhos Em Santo Amaro, pais, mães e filhos convivem até hoje com os mesmos problemas de saúde dentro de casa. Isso quando esposas ou filhos de ex-funcionários não morrem antes mesmo dos trabalhadores que estavam todos os dias dentro da Cobrac. “Minha mãe, que lavava a roupa de meu pai, teve problemas nos ossos, osteoporose, artrose. Ela morreu com as pernas tortas. Antes de morrer teve uma perna amputada, não conseguia mais andar. Meu pai morreu de câncer de pulmão em metástase”, lembra Moacyr Boa Morte, 60 anos, que também trabalhou na fábrica e diz ter passado os problemas de saúde para os filhos. Moacyr Boa Morte e o filhoFoto: Arisson Marinho/CORREIO “Isso é uma coisa que veio de meu pai pra mim e eu passei para meus filhos. Não tem jeito. Não tenho como tirar de mim essa culpa”, diz Moacyr, motorista de ônibus escolar, ao lado de um dos filhos, que também sofre com os diversos sintomas causados pela contaminação. Moacyr ainda teve sorte de conseguir trabalho. A maior parte dos sequelados vive na informalidade, porque as empresas e comerciantes dificilmente abrem as portas para eles. “Depois de lá (de trabalhar na Cobrac) não consegui mais trabalho. Vivi de bicos por toda a vida”, conta José Carlos da Silva, 63 anos. “E minha esposa também sofre com dores. Ela já foi a diversos médicos e todos disseram que tem chumbo no sangue dela. Os pés dela já não servem mais pra nada”.

Viúvo do chumbo No caso de José Gomes Ribeiro, o seu Zeca, a dor não é só das inflamações nos músculos e ossos, mas também pelo luto de ter perdido a esposa. E a culpa de ter deixado ela lavar aquele bendito macacão. Ela se foi antes dele. “Minha esposa era forte, saudável. Eu levava o macacão para casa pra lavar. Era tanta sujeira que se você colocasse o macacão em pé, ele ficava duro. A mulher lavava na bacia, no fundo da casa. Ela começou a ficar com as juntas duras nas mãos. Depois apareceram os problemas de rim e ela acabou morrendo”. Agora seu Zeca chora toda vez que vê a foto da esposa. Morreu há quase 4 anos, em setembro de 2015, aos 71 anos, com sintomas de contaminação.