Crise deve demitir 30 mil profissionais de escolas particulares baianas até o fim do ano

Professores estão vivendo de esperança: 'trabalhava 48 horas por dia para suprir necessidades de pais, colégio, crianças'; confira relatos

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  • Priscila Natividade

Publicado em 30 de agosto de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração: Morgana Miranda/ CORREIO

“A escola me ligou e apenas ouvi: 'você está desligada da instituição'. Trabalhava 48 horas por dia para suprir necessidades de pais, colégio, crianças. Sem vida, sem dar atenção a filhos, marido, casa”, conta a professora de Educação Infantil, Amanda*, que pediu para não ser identificada. A pandemia não dá trégua aos professores. Além dos desafios de adaptação ao ensino remoto, ela trouxe uma onda de demissões em massa dos profissionais de educação.

Segundo uma estimativa da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), com a lei que obriga as escolas baianas a darem descontos de até 30%, já em vigor, 30 mil professores que trabalham na rede particular de ensino podem ser demitidos na Bahia até o final do ano.“Esse desconto vai matar o setor. Há uma perda grande de contratos na Educação Infantil, principalmente de crianças de 0 a 3 anos. Não tem como pagar sem receita e isso pode ocasionar sim, demissões maiores do que as que já estavam acontecendo”, afirma o presidente da Fenep, Ademar Batista Pereira.O Sindicato de Professores de Escolas Particulares da Bahia (Sinpro-BA) reconhece o aumento do número de professores desempregados. De acordo com a entidade, nos últimos cinco meses, os desligamentos na Educação Infantil e no Ensino Superior alcançaram um patamar entre 30% e 40%, como pontua o coordenador geral do Sinpro-BA, Allysson Mustafa.

“As escolas se justificam pela redução de receitas e  necessidade de adequação ao momento. Enquanto isso, os professores vivem  de demandas excessivas, medos e  perda de renda”.

Cadê meu professor?  As aulas presenciais estão suspensas na Bahia desde março. Será que os alunos vão encontrar seus professores quando a escola reabrir? O Grupo de Valorização da Educação (GVE), que reúne mais de 60 escolas em Salvador e Região Metropolitana, não dá garantias quando a isso. Para o representante do coletivo, Wilson Abdon, é difícil manter uma escola diante de uma inadimplência que chega a 50%.“As escolas continuam em risco, devido a grande perda de alunos. As demissões ainda não foram realizadas nas escolas do grupo, mas estão na mesa. Vai depender da situação de cada entidade”.O professor Arthur* ensinava inglês no programa bilíngue de uma renomada escola de Salvador há 15 anos. Mesmo com uma redução salarial de 25%, ao aderir à Medida Provisória 936, ele foi demitido em julho. “Minha dedicação era exclusiva. O sentimento é de impotência e decepção. É um enorme desafio de sobrevivência”, afirma.

Efeitos colaterais  O diretor do Sindicato das Escolas Particulares da Bahia (Sinepe-BA), Jorge Tadeu,  não abre a planilha de gastos, porém, é mais um que insiste que a conta das escolas não está fechando. “As escolas são empresas com fôlego financeiro restrito”, ressalta.

Segundo dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI-BA), o setor de educação mercantil (educação privada) apresentou uma retração de 27% no segundo trimestre comparado com o mesmo período do ano anterior. Para o diretor de Indicadores e Estatística da SEI e presidente  do Conselho Regional de Economia (Corecon-BA), Gustavo Casseb Pessoti, em vez  de pressionarem a volta das aulas presenciais, as escolas deveriam cobrar incentivos do poder público.“O recurso que foi prometido pelo governo federal não chegou. Uma escola é uma empresa. Não dá para evitar demissões se não houver esse incentivo. A única solução é crédito”. Alternativas  O coordenador de projetos da organização sem fins lucrativos Todos Pela Educação, Ivan Gontijo, defende que não há escola sem professor.  “É uma situação que não tem culpados nem mocinhos, entretanto, preservar a vida é mais importante do que acelerar a volta às aulas por uma questão financeira”.

Diretor administrativo do Colégio Marizia Maior, Carlos Maior, ainda não demitiu e nem pretende desligar nenhum dos 32 professores que trabalham na escola, localizada no bairro de Stella Maris, que tem turmas da Educação Infantil ao Ensino Médio. Não é que a crise não tenha atingido a instituição, porém, ela foi amortizada pela reserva financeira mantida pelo colégio.“A inadimplência é um problema e os descontos nós já sabíamos que teríamos que dar. Não demitimos e nem vamos demitir ninguém. A parte que o governo está cobrindo dos salários com a adoção à Medida Provisória, nos permite promover os descontos. A outra parcela e as despesas excedentes como os investimentos em infraestrutura vem de um fundo de garantia que a escola possui”, pontua.O percentual de inadimplência do Marízia está, em média, em 32%. Os salários e a carga horária dos professores tiveram redução de 50% a 70%, como acrescenta Maior. “Eu tenho que prever que alguma coisa vai acontecer. Nós não podemos trabalhar no limite. As escolas precisam ter uma reserva para que em situações de crise, a gente possa administrar”, completa.

O QUE DIZEM OS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO QUE FORAM DEMITIDOS NA PANDEMIA?

1. “O sentimento é de impotência e decepção”

Ensinava inglês no programa bilíngue de uma renomada escola de Salvador, que sempre elogiou o meu trabalho. Fui pioneiro no projeto bilíngue desta escola, inclusive, investindo financeiramente no meu desenvolvimento profissional. Cursei Letras Vernáculas com Inglês, pois sempre gostei de ter acesso ao mundo através da língua inglesa. Ser professor sempre foi a minha aptidão e sonho de profissão, desde criança. Trabalhava nesse grupo educacional há 15 anos, com dedicação exclusiva. Fui demitido no dia 4 de julho, por telefone, com a justificativa de problemas financeiros, mesmo tendo aceitado a adesão ao contrato de diminuição de 25% do salário que ganhava. É um enorme desafio de sobrevivência. Viver sem renda é irreal e por mais que sejamos otimistas, sabemos que a população está em crise financeira e, até para aulas particulares, a recessão está presente. Por enquanto, estou usando o dinheiro do FGTS e com muita coragem e resiliência, fazendo cursos de desenvolvimento profissional, que não têm custo e enviando currículos para entidades educacionais de todo o Brasil.

O sentimento é de impotência e decepção. As escolas estão sendo desumanas e antipedagógicas com essas demissões, ou seja, péssimos exemplos para os seus alunos. Os professores estão vivendo de esperança. Falta de humanidade e empatia por parte de quem deveria saber educar. (Arthur*, 50 anos, professor de inglês)

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2. “A instituição não compreendeu a dificuldade que eu tive e me demitiu”

Tenho contado com a ajuda da minha família com empréstimos em dinheiro, depois que fui demitida de um dos meus empregos. Leciono disciplinas de artes e teatro com uma carga horária de 20h, no total, somando todas as instituições. Já trabalhava há 3 anos e 4 meses na escola de onde fui demitida. Era lá que eu garantia metade da minha renda. Logo nas primeiras semanas da pandemia, eu tive muitas dificuldades em utilizar a ferramenta que a instituição havia escolhido para as aulas online. Não conseguia acessar. Uma hora eram problemas na internet, outra com os aparelhos que tinha à minha disposição naquele momento. A instituição não compreendeu a dificuldade que eu tinha. Apesar de ter disponibilizado um tablet, ele não funcionava. Mandei vídeos e áudios explicando o ocorrido e não obtive ajuda. Na semana seguinte fui demitida e a escola optou por contratar outro profissional que já dominava essas habilidades. Com o passar do mês, me esforcei muito e consegui solucionar os problemas tecnológicos que havia tido e prossigo dando aulas remotas para outras escolas que trabalho e confiaram no meu comprometimento.

Senti muito medo e a insegurança de algo tão novo e diferente na nova rotina imposta pelo ensino remoto, porém, depois de superar esse primeiro impacto, o desafio foi se tornando prazeroso, a busca por novas metodologias de ensino me fez sentir viva e orgulhosa de mim como professora.

Tenho me dedicado bastante, assistindo vários tutoriais e lives a respeito destes temas para que a cada dia, me torne mais capacitada diante desse novo modo de ensinar. (Carolina*, 30 anos, professora de artes e teatro)

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3. “Ser demitido em uma ligação pelo celular mata qualquer indivíduo”

Tenho uma especialização, um mestrado e um doutorado no meu currículo. Era professora de duas instituições de ensino superior onde ensinava disciplinas como gestão de pessoas, administração da produção, logística empresarial, gestão pública e marketing, até ser demitida das duas, no mês de julho, por telefone. Tanto uma faculdade como a outra reduziram o quadro de professores, em torno de 40% a 45%, com demissão em todos os cursos, exceto os da área de saúde. Já vivíamos, há um tempo, uma situação de redução de carga horária e ganhando salários de especialistas, mesmo com título de doutorado, recebendo R$ 29,90 por hora/aula. Porém, nós aceitávamos, porque precisamos trabalhar. O interessante é que estas faculdades nos contratam como especialistas e quando vem visita da comissão do Ministério da Educação (MEC), eles mostram o diploma de doutor para ganhar o reconhecimento ou recredenciamento. A pandemia impactou de maneira desastrosa os professores.

As instituições de ensino superior também não estavam preparadas para o ensino remoto, passando essa responsabilidade para o professor dizendo que ele escolhesse uma plataforma gratuita para dar essas aulas. Foi uma loucura. Na realidade, eu amo o que faço. Quando pequena, minha mãe era professora e dava banca em casa e eu ajudava. Todos os professores demitidos foram pegos de surpresa.

A cobrança é muito forte, chegando a configurar assédio moral. Ser demitido em uma ligação pelo celular mata qualquer indivíduo. Tenho procurado emprego até fora do estado. Estou colocando meu currículo nas mãos de pessoas que possam me ajudar.

O que nós ouvimos é a resposta de sempre: não estamos contratando. É um tratamento sem consideração e respeito, quando o futuro de um país está na educação. (Antônia*, 63 anos, professora de Ensino Superior)

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4. “Não ouvi nenhuma justificativa da escola”

Nós, professores, fomos levados ao extremo em todos os sentidos: psicológico, físico. Trabalhava na educação infantil e também como professora itinerante com crianças especiais. Sempre gostei de crianças típicas e atípicas. Era professora nesta escola há 9 anos. Tive uma perda grande de renda, estou recebendo as parcelas do seguro. Para complementar a renda, vendo Avon, comecei a vender roupas e produtos da fazenda de minha família. Não ouvi nenhuma justificativa da escola, apenas “você está desligada da instituição”. Tenho qualificação e estou terminando duas pós-graduações e, com fé em Deus, em breve estarei abrindo minha clínica e iniciando meus atendimentos.

Decidi trabalhar com crianças de outra maneira e estou me dedicando mais aos meus estudos. Me despedir delas e dos pais foi a parte mais difícil, pois já estavam acostumados com minha metodologia e maneira de ser. Mas prometi, que quando a pandemia passasse, daria um abraço em cada um. Por outro lado, eu não posso negar que me sinto aliviada.

Por tudo que estava passando, meu sentimento é de alívio e descanso, pois estava muito difícil toda esta situação que enfrentava, trabalhando 48 horas por dia para suprir necessidades de pais, colégio, crianças. Sem vida, sem dar atenção a filhos, marido, casa.

Está muito complicado para todos os professores. Porém, com toda certeza, apesar de psicologicamente exaustos, vamos sair desta pandemia, gratos por termos a oportunidade de experimentar e promover novas possibilidades de ensino. Pude vivenciar bastante este novo aprendizado e melhorar minha experiência. (Amanda*, 38 anos, professora de Educação Infantil)

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5. “Minha turma toda cancelou a matrícula”

Na escola onde trabalhei por quatro anos, minha turma foi fechada por conta dos cancelamentos das matrículas. Sou professora de Educação Infantil. A turma toda cancelou a matrícula. A pandemia atingiu muito a Educação Infantil. Fui demitida no final do mês de abril e conheço, inclusive, várias colegas de outras escolas que foram demitidas pelo mesmo motivo. Já sou formada em Secretariado Executivo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas há seis anos resolvi largar tudo e fazer Pedagogia, por gostar muito de trabalhar com crianças. Quando fui demitida, me senti frustrada por não dar continuidade a um trabalho que tinha acabado de começar. No momento, não tem como voltar ao mercado. Vou só tirar a licença-maternidade de uma colega, mas estou usando o meu seguro desemprego, o FGTS e contando também com a ajuda da minha família. As escolas continuam fechadas. Penso que normalidade só voltará no ano que vem. Não guardo mágoa da escola, entendo que minha turma foi cancelada por conta da decisão dos pais de tirar as crianças menores.

Estou encarando isso de uma forma muito consciente. A única alternativa que vejo para que as escolas não demitam seus professores é conceder um desconto maior nas mensalidades. A verdade é que estamos cansados de tanta cobrança dos pais, que insistem em desvalorizar o trabalho online que os professores estão fazendo, comparando com as aulas presenciais.

A pandemia me ensinou a trabalhar com a tecnologia, a me reinventar, ser resiliente. E esse é um ganho muito importante para qualquer profissional. (Paula*, 46 anos, professora de Educação Infantil)

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6. “A pior parte é a espera, a expectativa adiada”

Ensinava o 1° ano do Ensino Fundamental, como a professora auxiliar por ser ainda estagiária. Porém, estou prestes a me formar. Dependo só que Universidade Federal da Bahia (UFBA) retorne para apresentar meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Ensinar sempre foi meu sonho. Admirava muito minhas professoras e queria ser como elas. Compartilhar conhecimento e poder transformar a vida das pessoas através dele é fascinante, é a melhor maneira de mudar o mundo e demonstrar amor pelas pessoas. Trabalhava nessa escola há seis meses e, logo no início da pandemia, me informaram sobre a paralisação e suspensão de alguns contratos. Imaginei que seria uma das primeiras a ter o contrato suspenso, justamente por ser estagiária.

Trabalho como atendente de telemarketing há 6 anos e é isso que tem segurando minha renda até agora. O meu outro trabalho no turno oposto foi o que me deu uma estabilidade. Me sinto triste por não estar atuando na área que realmente amo, mas na esperança de que tudo volte ao normal.

A diretora da escola falou que quando as aulas presenciais retornarem, talvez me chame novamente. Então estou na espera, mas pesquisando outras possibilidades. A instituição priorizou manter o contrato de quem estava mais tempo com eles e acho até justificável. A pior parte é a espera, a expectativa adiada.

Porém, vamos sempre encontrar um jeito como, por exemplo, dando aulas particulares online. Alguns pais já entraram em contato comigo, em busca desse suporte, como uma espécie de reforço escolar para seus filhos. Só não podemos desistir.(Valéria*, 30 anos, professora do Ensino Fundamental I) 

Leia também: Quem tem coragem de voltar às aulas? 

É SEU DIREITO

Capacitação e condições de trabalho O advogado sócio do escritório Santos & Novelli Advocacia e Consultoria, Breno Novelli,  destaca que as escolas precisam garantir treinamentos e equipamentos para a realização das aulas remotas: “A conversão de aulas presenciais em gravadas deverá ser re- gulada por aditivo contratual”, pontua o especialista. 

As escolas podem demitir sem justa causa para reduzir custos? Novelli esclarece que sim. “A rescisão do vínculo de trabalho não precisa ser motivada, ou seja, expor motivo, desde que todas as verbas rescisórias sejam quitadas”, explica. Caso a demissão aconteça durante a estabilidade prevista na Medida Provisória 936,  a instituição deverá pagar, além de todas as verbas rescisórias cabíveis, indenização que pode variar entre 50% e 100% da remuneração que este professor teria direito no período de garantia provisória. 

*Nome fictício. Todos os professores ouvidos pela reportagem pediram para não serem identificados