Crônica do desalento

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 6 de setembro de 2021 às 05:03

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

É possível que esta seja a última crônica que escrevo sob um regime democrático no Brasil. Amanhã se iniciam os artifícios para uma tentativa de golpe, cada dia mais clara e manifesta. Um flerte que vem desde a ascensão ao poder do delinquente que hoje ocupa – interinamente, embora ele finja não saber – o Palácio da Alvorada. É certo que amanhã, justamente no dia da independência, esse flerte se tornará mais explícito e se transformará em assédio. Resta saber se terá êxito em sua investida.

O que eu acho? Bastante improvável. Será apenas mais uma pantomima de um palhaço fajuto tentando retesar o tecido da democracia. Por mais que a febre amarela se instale amanhã em praças e avenidas, vociferando contra sabe-se lá o quê e comemorando os quase 600 mil mortos pela covid-19, os 14 milhões de desempregados, os 18 milhões de miseráveis. Os números dizem tudo. Mesmo assim, tenta-se infligir, em um país já apodrecido e empobrecido, uma ruptura institucional ainda mais grave que a de 2016. Falta só combinar com os brasileiros.

Enquanto isso tocamos em frente, sem mais reconhecer as manhas e as manhãs ou o sabor das massas e das maçãs. Os versos de Sater e Teixeira parecem escritos em um idioma desconhecido. Escrevemos todos os dias uma crônica do desalento, do desencanto. Como quem chora, como quem morre. E nos faltam os versos de Bandeira para tentar compreender o fundo do poço, o túnel sem luz, a zona abissal. Seguimos cegos na terra arrasada.

Nunca nos deparamos com elementos tão execráveis como os que saíram da sarjeta a partir de 2019 para assombrar os nossos dias. Diante de figuras de nome pomposo e comportamento patético como Frederick Wassef e Abraham Weintraub, até mesmo um gângster ordinário como PC Farias, eminência parda dos tempos de Collor, passa a ter um certo charme. Até mesmo os tempos nefastos da era Collor passam a ser vistos com alguma nostalgia.

Como canta Zeca Baleiro, o medo é a moda desta triste temporada. Medo de balas perdidas e da profusão de armas, hoje quase tão comuns quanto celulares nas mãos dos brasileiros. Afinal, precisamos de mais fuzis, e não de mais feijão. Medo da fome, do desemprego, do vírus, do tempo que passa tão rápido que não nos damos conta do que estamos perdendo. Dias, semanas, meses, tudo igual. Opacos, sombrios, vazios, enfadonhos.

Uma coisa é certa: quando chegar o momento, vamos cobrar com juros esse nosso sofrimento. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, esse samba no escuro. Os versos de Chico vão nos redimir. Se vivemos uma distopia, se o que temos é uma Gilead tropical, tratemos de expulsar os opressores, os arautos do caos, os arquitetos da destruição. Vão-se embora, escafedam-se, parem de encher o saco! Pena que isso só será possível ao fim de 2022.

Esta semana, um amigo me mandou um sambinha simples e bonito, de um compositor capixaba que não conhecia, chamado Jonathan Silva. Já que esta crônica do desalento anda tão recheada de versos e referências do que produzimos de bom neste país depauperado, por que não finalizar com mais alguns, para desanuviar um pouco: “Se o mundo ficar pesado/ Eu vou pedir emprestado/ A palavra poesia./ Se o mundo emburrecer/ Eu vou rezar pra chover/ A palavra sabedoria”