Crônica dos dias de desolação

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  • Paulo Sales

Publicado em 27 de abril de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Enquanto escrevo, chove sobre Salvador. Uma chuva renitente, triste, que prenuncia tempos duros. Enquanto chove, penso com algum desalento na minha vida, na vida dos enfermos, na vida do gari que, mesmo encharcado, faz o seu trabalho na calçada em frente. Enfastiado, revejo fotos de viagens que não voltarei a fazer tão cedo. Devoro livros em sequência, como se fossem iguarias de um menu-degustação. Ponho-me a salvo das lives que se sucedem nesses dias de confinamento. Saio apenas para levar Pudim para passear ou comprar algo no mercado, cheio de medidas restritivas de circulação.

Essas breves saídas são um alento. Observo as pessoas, muitas de máscara, muitas temerosas, como eu. Retorno a ruas que percorria quase todos os dias, agora com uma desolação quase lunar. Outro dia, fui na Barra com minha filha e Pudim. Na praia que adoramos, ao lado do Farol, as ondas alcançavam ninguém. No Porto, raros pescadores na areia e, dentro do mar, mergulhadores mais raros ainda, dos quais só se viam os pés de pato. Contemplamos aquela paisagem ao mesmo tempo arrebatadora e melancólica, o sol indo embora por trás da ilha. “Estrelas já vão luzir na noite da Bahia preta”, cantei baixinho os versos de Caetano antes de voltar para casa pela orla, os olhos sempre que possível virados para o oceano já escuro.

Continua chovendo. Tento retomar o projeto de um livro iniciado 18 anos atrás, quando morei por uns meses em Fortaleza. Um romance ambientado na São Paulo dos anos 90, protagonizado por estudantes de jornalismo, como eu fui um dia lá mesmo. Tento pensar em novas possibilidades profissionais para depois da pandemia. Tento terminar uma série sobre a Segunda Guerra. Tento escrever esta crônica que não faço ideia onde vai desembocar. “Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor”, aconselha Beckett.

Percorro os livros na minha estante (“que nada dizem de importante, servem só pra quem não sabe ler”, já cantava o sábio Raul). Retiro o Baú de Ossos, de Pedro Nava, que há décadas espera calado a sua vez. Assim que terminar A Orgia Perpétua, o delicioso ensaio de Mario Vargas Llosa sobre Madame Bovary, será devidamente deflorado. O livro de memórias de Nava me foi fortemente recomendado, numa troca de mensagens no Instagram, por Luiz Horta, exímio conhecedor de vinhos e dândi de boa cepa, que o considera um dos 10 melhores que leu.

É quase meio-dia e parece fim de tarde. No som, Andrea Motis, cantora e trompetista catalã, entoa com lindo sotaque espanhol os versos de Antonico, samba clássico de Ismael Silva. Pede ajuda a Nestor, que está vivendo em grande dificuldade: “Faça por ele como se fosse por mim”. Há uma beleza cadente nesses sambas antigos, compostos por gênios sem educação formal dotados de um talento prodigioso para falar de sentimentos universais. Cartola é assim, Cavaquinho e Paulinho idem. Com seus versos, retrataram o Brasil dos invisíveis.

Chego ao fim do texto. A chuva também parece chegar ao fim, ao menos por enquanto. O desalento, contudo, permanece.