Crônica sobre nada

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  • Paulo Sales

Publicado em 29 de novembro de 2021 às 15:03

- Atualizado há um ano

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O clarão da tela em branco reflete o deserto em que minha mente se enfurnou. Um deserto arenoso, instável, que se transfigura em falta de ideias e de assuntos para uma crônica. Transito entre dois lados, de um lado, eu gosto de opostos. Mas não consigo encontrar pouso em um tema qualquer que me desperte interesse.

Leio sobre as centenas de balsas do garimpo ilegal no rio Madeira, à espera de consumar a destruição absoluta. Suas dragas gigantes vão buscar ouro debaixo de terras sagradas e despejar mercúrio nelas. É esse o projeto. Destruir, destroçar, devastar. E eu, entre desiludido e exaurido, apenas lamento. De desalento, de desencanto. Ansiando pelo dia em que toda essa gente escorrerá pelo ralo da história, regressando ao esgoto.

“O tempo me dado para andar nessa terra é um tempo de guerra, é um tempo cruel”, dizem os versos de uma velha canção romântica, popularizada pela hoje desaparecida Joanna. Tempo duro, cruel, avassalador em sua insânia e insensatez. “Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido”, escreve Eliot em Os Homens Ocos. Prenúncio de pragas bíblicas: água que vira sangue, úlceras no estômago de índios, animais calcinados. Por fim o pó.

Outro dia arrancaram uma árvore aqui em frente. Uma árvore linda, saudável, repleta de pássaros. Resta o toco na grama, como um membro amputado. Sem os galhos frondosos, observo sem interesse o outro lado da rua, as casinhas que conferem um ar bucólico ao bairro onde moro. Apesar das buzinas, apesar do excesso de trânsito, apesar de você amanhã há de ser outro dia.

Tenho horror ao barulho das motosserras. Elas soam como um instrumento de tortura – já devidamente utilizado por um assassino contumaz. Hildebrando Pascoal, que chegou a ser deputado e passou um tempo encarcerado, por ter o insólito costume de serrar seres humanos, entre outros hobbies bizarros. Por que fui lembrar logo agora de tão triste figura? Talvez porque indivíduos como ele simbolizem tão bem o Brasil de hoje.

Continuo sem norte, enquanto a tela aos poucos se enche de garranchos. Frases soltas, que juntas não formam um todo coeso, muito menos uma crônica. Talvez uma crônica sobre nada, inútil, que importuna o raro leitor que se aventura por aqui. De vez em quando acontece: a mente exaurida se despe e repousa preguiçosa, recusando-se a trabalhar. E eu fico penando, buscando nas fronteiras da consciência alguma luz que me traga a inspiração, algum bote que me traga a salvação.

Os temas se aproximam e escapam sem que eu esboce disposição para aprisioná-los num texto. Temas recorrentes, gastos pelo uso excessivo, como uma calça jeans que gostamos. De que adianta repetir os mesmos argumentos, revelar os mesmos temores, manifestar as mesmas desilusões, num leitmotiv prolixo e enfadonho? Como compreender o mundo se quanto mais escrevo, menos racional ele se mostra para mim?

Nunca fui bom em escrever movido pela cólera, a saliva escorrendo pelos cantos da boca, as frases se atropelando como uma avalanche. Gosto de mastigar lentamente cada palavra, sentir a sua textura, o seu poder de sedução, a sua capacidade de harmonizar sem arestas com as entrelinhas. Mas, neste momento, tudo que consigo edificar é isto que você lê agora, se é que chegou até aqui. Muito pouco, quase nada. Como diria uma velha canção de Hermes Aquino, esse arremedo de crônica é só um castelo de areia na beira do mar.