Dá licença movimento negro, vira-lata caramelo também vai falar

Sim, quero botar formigas embaixo da sua bunda, aí no seu sofá

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  • Da Redação

Publicado em 5 de fevereiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Eu sou uma mulher percebida como não-negra ou não-branca, a depender de variáveis geopolíticas. Na tentativa de evitar esse incômodo "não" e ser algo "sim", me defino (e assim me sinto) mestiça, praticamente uma vira-lata caramelo, sem raça definida, tipo comum, comuníssimo. O que é delícia e limbo, algo entre beleza e conflito, quando contraponho autopercepção e lugar social, sob o prisma da questão racial no Brasil. Mas é um lugar. E legítimo. 

Além de mestiça, sou feminista desde o zigoto. Do meu jeito e, neste lugar, sem conflitos, porque sou percebida mulher indiscutível. Segura e cheia de "autoridade", recentemente passei a achar sem noção a prática de homens "gente boa" e "feministos" que apenas repercutem e ampliam falas femininas. A sensação é de que, com isso, conseguem crachás de "aliados", status de "bacaninhas", sem trabalho algum. Já distribuí esse crachá por causa de "eu te entendo, querida", agora tô com uma pilha deles encalhada aqui. Apurei os critérios. Felizmente, envelheci. 

Depois de tanta estrada, acho básico que homens busquem em si mesmos os próprios incômodos provocados pelo lugar que ocupam e que falem por si. Tipo "sai da minha aba" também nisso. Se não percebem, em suas próprias peles, nenhum problema com o machismo - e não falam sobre eles - os caras "bacaninhas" acham que estão apenas me fazendo um "favor". Ou nem isso. Muitos só estão mesmo procurando fazer sucesso entre mulheres livres e independentes, ganhando laissez-passer entre ingênuas. 

Contraditoriamente, no entanto, tenho sido - eu e muita "gente boa" -  o equivalente a esse "feministo", só que na questão racial. Tá facinho demais. É só eu compartilhar um texto antirracista pra ganhar meu crachá de antirracista, é só emprestar o perfil nas redes, pra uma pessoa negra, que o/a "influencer" branco/a já é aliado. É só dizer que adora candomblé pra ficar simpático/a. Não é preciso se expor, falar de si. Não se toma nenhuma porrada, assim. De nenhum lado, percebe? Bem confortável. Eu acho. E tão superficial quanto o tal "feministo",  repito porque adoro rir dessa palavra, amiga-irmã de "esquerdomacho". 

(Sim, quero botar formigas embaixo da sua bunda, aí no seu sofá.)

Repare: nesta semana, recebi, de uma amiga negra, um vídeo no qual um homem branco dizia ter vontade de arrancar a pele de um homem negro. Ao ver aquilo, não senti a dor da minha amiga nem "de todo o povo negro". Senti a minha própria dor que não dependeu de qualquer sentimento de solidariedade. Ainda que exista a solidariedade - não me entenda mal - aquele vídeo doeu em mim por mim mesma. Pelos meus próprios motivos. Pela minha própria expectativa de mundo. Pelo meu próprio conceito de civilidade. 

É horrível, para mim, ser contemporânea daquele cara. É preocupante ver meu filho (de pele branca) crescer em um país onde alguém tem a pachorra de gravar um vídeo daquele e publicar. Assim como em muitas outras situações, eu não preciso tomar emprestado o sentimento de pessoas negras. Eu não preciso apenas repercutir e ampliar discursos de pessoas negras pra falar sobre essa doença social, porque esse ambiente também é doente para mim. 

"Mas o próprio movimento negro patrulha". Sim, é verdade. Entendo, inclusive. Da mesma maneira que escuto "cala a boca" das pessoas que são alvo de racismo todo dia (e devo apanhar quando publicar este artigo, problema nenhum), também já mandei homem calar a boca, aqui do meu "lugar de fala". Porque não se compara o que vivo, sendo mulher, com as mazelas subjetivas dos caras. Homem não morre por ser homem. Gente de pele clara não morre por ter pele clara. Mas mea culpa: fizeram bem os homens que "desobedeceram" e, com isso, me irritaram. Não haverá um mundo sem homens. Nem um Brasil sem brancos/as e mestiços/as, saiba. Melhor que sejam reais aliados. 

Eu não quero "fazer o favor", que isso, inclusive, supõe um lugar de superioridade. Olha essa, entre tantas ciladas. Meus amigos e amigas pretos/as falam por eles/as, nos próprios espaços arduamente conquistados. Eu escuto, aprendo e aplaudo. Mas não estou no lugar deles nem eles no meu. Atuo por mim. Digo as minhas palavras. O mundo que segrega e exclui pessoas pela cor da pele não interessa a mim. Me faz mal. A mim. Esse é o ponto de compreensão no qual, talvez, eu só tenha chegado pelo trabalho intelectual de pessoas negras. Agradeço e entendo que, agora, tenho que fazer meu próprio trabalho. 

(Assim como homens instruídos por gerações de mulheres que não desistiram, não se renderam, não cansaram.) 

O racismo não adoece apenas pessoas de pele preta, assim como o machismo não adoece apenas mulheres, ainda que muitas páginas possam ser escritas sobre privilégios de gente branca e de gente homem. Reconheço todos, assim como percebo a doença dos "privilegiados", essa coisa sub-civilizada com ares de superioridade. São patéticas as mesas de "brancos/as", são patéticas as mesas de "machos". Por motivos muito comparáveis. 

Então, dá licença movimento negro, vira-lata caramelo também vai falar. Com todo e máximo respeito. Do mesmo jeito que devo gratidão e respeito à feminista mais radical. Tudo importa, todo mundo faz parte, até a militante negra que se negou a dividir a lata de cerveja comigo. Antes da covid, por motivo de cor. Zero questão com ela, toda guerra tem pelotão de frente, abrindo alas e atirando pra matar. Entendi na hora, entendo agora. Também, em muitos momentos, é necessário odiar. 

Não tem racismo reverso e tudo é racismo, sim. Entendo assim. Por isso, se em todo lado tem racismo - inclusive no artigo do antropólogo baiano - tem dentro e perto de mim. É esse o meu "lugar de fala". Vem daí a compreensão de que não preciso mais, apenas, ser simpática à causa. Que fazer só isso é quase cinismo, preguiça e talvez até fetiche como o do "feministo" que me conheceu careca e passou dois anos me pedindo "raspe de novo a cabeça, vá...". A palavra "ridículo" não parava de me rondar.

Não basta mais cumprir a cartilha, não questionar turbantes e ir comer feijoada no Curuzú esperando o Ilê passar. Me poupem. Sair dessa gentileza superficial dá trabalho, sabemos. Mas, olhe. O machismo faz ridículo todo homem que brocha e não ganha dinheiro suficiente pra sustentar alguém. Também o desqualifica como humano capaz de lidar com emoções e amadurecer. Esses são exemplos de problemas que eles já entenderam. Massa. Adoro. Muito bem. 

O racismo faz das ruas lugares de medo, mata jovens negros e transforma jovens brancos em deprimentes cães raivosos. O racismo à brasileira limita a minha experiência de mundo, me faz querer morrer ao ouvir "preto imundo" de alguém se referindo ao homem com quem eu estava naquele Verão. O racismo atrapalha meu projeto de maternidade a cada vez que meu filho percebe que ser racista, neste país, é uma possibilidade. 

"White people problems" dirão, não sem razão e com alguma maldade. Eu sei. Da mesma maneira, aprendi que dor não se compara. Viver em um país que segrega pessoas pela cor da pele é estar imersa em um nível de incivilidade que atravessa todas as minhas vivências de mundo. É menor, é pequeno e cansativo. "Cansados estamos nós", dizem os/as militantes. Tô sabendo. É tudo muito chato. E ainda que o adjetivo "chato" seja o mais perto que gente de pele clara chegue dessa vivência tão pesada, o "chato" também faz parte. 

Cansei de educar macho e acho justo que gente negra tenha cansado de me dar aulas. Eu parasito, tu parasitas, ele parasita e, provavelmente, seus amigos "good vibes" parasitam também. Precisamente aqueles que dizem "vou calar que não tenho lugar de fala" emendando com "todo o respeito, honra e glória ao povo preto" e tal. Não tem um "lugar de fala" mas tem outro, cara pálida. Dentro da mesma questão. Na parte que lhe cabe. Ou, então, você acha que racismo é problema só de gente negra assim como machismo é problema só de mulher. Percebe a sutil diferença entre respeito e "deixa eu só fazer uma moral aqui"? 

Hoje, li o post da branca dizendo que o assassinato de Moise Kabagambe, na barraca de praia, no Rio de Janeiro, não foi racismo porque os assassinos também são negros. Olha o nível de incompreensão e simplismo. Se nesse exemplo explícito e contundente procuram controvérsia, calcule nas sutilezas e esquinas cotidianas. Essa mulher pretendendo me fazer de burra, e até dizendo "Brasil tem racismo, mas não foi o caso", me avilta porque supõe a minha cumplicidade, como grupo social "moderado". Ou com quem ela está falando,  afinal? Então, meu "lugar de fala" é "não me confunda com gente escrota". Qual é o seu? Cadê a sua voz? Se o seu incômodo é real - e não adereço, enfeite, ceninha - não precisa pedir permissão. Acredite: tá na hora de começar a falar.

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo.